Chanceler enterra bolsonarismo na diplomacia e redefine Brasil no mundo

Chanceler enterra bolsonarismo na diplomacia e redefine Brasil no mundo

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Jamil Chade – Num discurso revelador da dimensão da reforma da diplomacia brasileira a partir do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o novo chanceler Mauro Vieira anunciou nesta segunda-feira em sua posse no Itamaraty uma mudança profunda e abandono completo das linhas de política externa adotadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

Ao discursar, o novo ministro apontou para o “enorme trabalho de reconstrução, depois de um retrocesso sem precedentes em nossa política externa”.

Eis alguma das transformações que o Itamaraty adotará:

O fim do posicionamento pró-Israel adotado pelo governo Bolsonaro. Segundo Vieira, o Brasil voltará a adotar sua visão “tradicional e equilibrada” na questão entre Israel e Palestina, com a defesa das fronteiras reconhecidas internacionalmente, o direito internacional e a solução de dois estados viáveis. Na prática, o novo chanceler enterra a ideia do reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, algo sinalizado por Bolsonaro.

O fim do alinhamento automático com os EUA. Segundo Vieira, o Brasil vai buscar um relacionamento “em pé de igualdade” com os americanos e onde todos os temas estarão sobre a mesa. Não haverá, segundo ele, um alinhamento automático, numa referência à política adotada por Bolsonaro. “Com os Estados Unidos queremos relações em pé de igualdade, baseadas em valores e interesses comuns, sem qualquer tipo de preconceito sobre temas e assuntos, e isentas de alinhamentos automáticos. Desejamos dinamizar nosso relacionamento econômico e atrair investimentos, bem como continuar a fortalecer os laços humanos, culturais e educacionais que unem as duas sociedades. Trataremos de maneira madura eventuais diferenças, naturais em uma relação com essa importância e densidade”, disse.

Acordo com Europa terá de ser “equilibrado“. O novo chanceler indicou que o Brasil tem interesse num acordo comercial com os europeus. Mas insistiu que ele precisa ser equilibrado, numa sinalização de que o atual texto aprovado em 2019 pelo governo Bolsonaro não satisfaz a atual gestão. Ele ainda insiste sobre a necessidade de que as questões ambientais não se transformem em motivos de protecionismo, um alerta aos europeus.

Maior diversidade dentro do Itamaraty. Vieira indicou que vai adotar uma política de maior diversidade para a carreira diplomática, com um maior número de profissionais que representem indígenas, mulheres e negros.

OCDE em suspense. De acordo com o novo chanceler, o governo irá “examinar” o convite feito pela OCDE para a adesão do Brasil à organização. Ele, ao contrário do governo Bolsonaro, não garantiu que o Brasil irá seguir esse caminho e indicou que, antes, haverá uma avaliação sobre tal conveniência.

A volta da defesa de temas como igualdade de gênero, racismo e indígena na pauta da agenda internacional de direitos humanos. A visão contrária à postura adotada pelo Itamaraty e pela ex-ministra Damares Alves, nos fóruns internacionais. “O Brasil realinhará a política externa em direitos humanos aos parâmetros da Constituição Federal e do direito internacional dos direitos humanos, sobretudo na promoção da igualdade de gênero; no combate à discriminação e à violência em função de orientação sexual e identidade de gênero; na promoção da igualdade racial e o combate ao racismo e a xenofobia; e na defesa dos direitos dos povos indígenas”, afirmou Mauro Vieira.

A prioridade total aos temas climáticos, rejeitados por Bolsonaro e sua equipe. Para isso, Lula sediará eventos internacionais e quer diálogo para debater acordos. “O Brasil tem todas as condições de consolidar-se como modelo de transição energética e economia de baixo carbono”, disse o chanceler. “Isso exigirá esforço interno, mas também uma ativa política de atração de investimentos. Demandará recursos próprios, sem que deixemos de cobrar com firmeza a implementação, pelos países desenvolvidos, de seus compromissos em matéria de financiamento”, afirmou. “E exigirá uma diplomacia ambiental e climática de primeira grandeza, ativa e determinada a defender nossos interesses e a desempenhar o papel de facilitador e de gerador de consensos que, desde a preparação da Rio-92, o Brasil sempre soube exercer até recentemente”, completou.

Um dos pontos é ainda fortalecer a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) que, segundo ele, será “fundamental para reativar a cooperação nesses e em outros temas de interesse dos países amazônicos, bem como coordenar suas posições em foros mundiais”.

A volta da atenção ao entorno sul-americano. O novo chanceler, em seu discurso, deixou claro que o Brasil precisa reassumir sua identidade de sul-americano e emergente. Segundo ele, o maior prejuízo da política bolsonarista foi o distanciamento de seus vizinhos e que, portanto, sua meta é o retorno do Brasil para a região.

Democracia na América do Sul. Numa sinalização de como irá atuar, Vieira insistiu que vai promover o diálogo com todas as forças políticas e contribuir para estabilidade e democracia regional. O discurso foi visto como um aceno de que não haverá um alinhamento automático com governos como o de Nicolás Maduro. Mas um projeto de promoção de entidades e projetos como a Unasul. Segundo ele, a ideologia do Brasil na região será a da integração. Ele garantiu que o Brasil irá promover a democracia e ajudará forças políticas a superar tensões internas. Mas sem violar a soberania. “O retorno do Brasil à sua própria região significará o engajamento e o diálogo com todas as forças políticas, para que possamos recuperar a capacidade de defender nossos interesses e contribuir para o desenvolvimento e a estabilidade regionais. Nossa ideologia na região será a ideologia da integração”, disse.

Volta ao pacto da ONU sobre migrações. De acordo com o novo chanceler, o Brasil irá retomar sua posição dentro do mecanismo, abandonado por Bolsonaro em seus primeiros dias de governo. Naquele momento, agências da ONU e entidades internacionais lamentaram e criticaram a decisão e alertam que os maiores afetados serão os mais de 4 milhões de brasileiros espalhados pelo mundo, muitos deles em condições de vulnerabilidade. Ernesto Araújo, naquele momento, sustentava que “a imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país”.

Recompor relações bilaterais danificadas. O novo Itamaraty aponta que esse será um dos aspectos principais nos próximos meses, assim como “retomar o protagonismo construtivo nos foros e organismos internacionais onde temos uma contribuição singular a oferecer”. “O Brasil será um parceiro confiável, um ator incontornável, uma liderança e uma força positiva em favor de um mundo mais equilibrado, racional, justo e pacífico”, afirmou.

Reforma da ONU. Segundo Vieira, o Brasil e os demais países emergentes querem ter vez e voz na cena internacional. “Não podemos conviver com estruturas decisórias desatualizadas, que não refletem a contribuição que podem dar ao enfrentamento de desafios comuns. Atualizar a governança global na terceira década do século XXI é uma tarefa inadiável”, disse. “Seguiremos trabalhando para uma reforma e ampliação do Conselho de Segurança da ONU, órgão de que participamos em 2023, o segundo ano de nosso atual biênio como membro não-permanente”, afirmou.

Fome no centro da política externa. O Itamaraty passará assumir o Brasil como uma “potência agroambiental” e colocará o país como central na segurança alimentar mundial. “Em sintonia com a prioridade conferida pelo Presidente Lula ao combate à fome, atuaremos para fortalecer todos os elos da cadeia mundial de suprimentos alimentares, desde a livre circulação de insumos e tecnologias de produção até o acesso a alimentos de qualidade. Seremos incansáveis nos esforços para abrir mercados e diminuir e neutralizar barreiras ao comércio agrícola”, disse.

Universalismo e África. Mauro Vieira ainda apontou que o Brasil voltará a ter uma política externa para a África. “Ao movimento de retorno à nossa região deve corresponder a retomada da política externa verdadeiramente universalista. A África, região da qual o Brasil esteve ausente nos últimos anos, voltará a ser prioridade. Continente dinâmico, a África tem avançado em seu processo de desenvolvimento; constrói, agora, uma gigantesca área de livre comércio; e abrigará, em alguns anos, quase metade da juventude mundial”, disse.

“O diálogo político de alto nível com países africanos e suas organizações regionais será restabelecido para tratar de desafios comuns, como segurança alimentar, mudança do clima, comércio e investimentos e intercâmbio de tecnologias. Fortaleceremos a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul”, completou.

China. O discurso ainda apontou que é de “extrema importância” desenhar e executar uma estratégia ambiciosa para a Ásia-Pacífico, a região mais dinâmica do mundo, e, em particular, para a China, Índia e Japão, além do conjunto da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). “Buscaremos novas áreas de cooperação em temas de interesse do Brasil, como mudança do clima; proteção do meio ambiente; ciência, tecnologia e inovação; além de ampliar e diversificar o comércio e atrair mais investimentos”, disse.

Cultura e colaboração. O novo governo ainda vai retomar mecanismos como a Agência Brasileira de Cooperação e o Instituto Guimarães Rosa. “A ABC, com sólida experiência em programas e projetos de cooperação, será o fio condutor do intercâmbio com países em desenvolvimento e outros parceiros, com atenção especial à América Latina e o Caribe; à África; e aos países de língua portuguesa. O Brasil voltará a ser um país solidário e engajado. O Instituto Guimarães Rosa, por sua vez, nasce como articulador institucional da diplomacia cultural e educacional, bem como da difusão da língua portuguesa, e será parceiro de primeira hora do relançamento da política cultural brasileira”, explicou.

*Uol

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