As eleições de 2022 pareciam ter cicatrizado uma ferida de quase vinte anos, aberta quando, em 2004, um grupo de parlamentares do Partido dos Trabalhadores, insatisfeito com os rumos políticos do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), abriu uma dissidência e fundou o Partido Socialismo e Luta. O ponto de discórdia foi a votação da reforma da Previdência, boicotada por petistas que seriam, por isso mesmo, expulsos do PT: Luciana Genro, Heloísa Helena, Babá e João Fontes.
No rastro desses nomes, outros se juntariam à nova sigla e fariam um movimento de rebeldia, em nome das teses socialistas fundantes do partido de Lula, José Dirceu e José Genoino criando aquilo que, dali para frente, até o último governo Dilma, iria ser por eles mesmos chamado de “oposição à esquerda”. Esse tango esquerdista vinha sendo dançado, sem grandes atropelos, até a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, quando se tornou claro que o tempo da civilidade estava prestes a acabar. Nessa toada, em 2022, o Psol, pela primeira vez desde sua fundação, abriu mão de lançar um candidato à Presidência da República para apoiar a candidatura de Lula, já no primeiro turno – sob aplausos gerais de toda a esquerda brasileira.
Abrir mão significou tirar do páreo a estrela mais brilhante do partido, Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que dois anos antes havia conseguido a proeza de ir para o segundo turno nas eleições da prefeitura de São Paulo, quando foi derrotado pelo então prefeito Bruno Covas, do PSDB, reeleito em outubro de 2020, mas falecido em maio do ano seguinte, vítima de câncer. Em troca, o psolista Boulos recebeu o apoio do PT para ser eleito como campeão de votos, em São Paulo, para a próxima legislatura da Câmara dos Deputados. Mais ainda: passou a figurar como pule de dez para ocupar o Ministério das Cidades do futuro governo Lula.
Tudo isso explica o tamanho da turbulência causada pelas declarações da deputada federal reeleita Sâmia Bomfim, em entrevista à jornalista Monica Bergamo, da Folha de S.Paulo, dando conta de uma maioria prestes a decidir pela não participação do Psol no governo Lula. A fala não surpreendeu apenas Boulos, mas boa parte do partido, aí incluído o presidente da sigla, Juliano Medeiros, que faz parte do grupo de transição do governo petista instalado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília.
Sâmia, uma das mais competentes e corajosas parlamentares do País, apresentou um argumento lógico e, de certa forma, previsível, em se tratando do Psol: é preciso ter uma esquerda independente no Congresso Nacional, desvinculada de cargos no governo federal, para sustentar pautas específicas que poderão ser interditadas por conta da presença de forças conservadoras colocadas dentro do governo Lula, derivada da frente ampla formada para eleger o petista, no segundo turno. Entre elas, as de direitos humanos, alvo preferencial das hordas fundamentalistas inseridas na direita brasileira.
Ninguém é ingênuo de achar que o movimento de Sâmia, apoiado pelo grupo mais radicalmente à esquerda do Psol, não está vinculado a uma luta interna pelo poder, no partido. A ascensão de Boulos como liderança política, mas vinculado ao PT, criou uma contradição ideológica e programática difícil de equacionar fora do guarda-chuva da luta contra o bolsonarismo. Pelo cálculo do grupo representado por Sâmia (além dela, nomes como Glauber Braga, Fernanda Melchiona e Talíria Petrone), a acomodação de Boulos no governo Lula poderá levar o Psol a trilhar o mesmo caminho do PCdoB, antigo partido revolucionário que, faz algum tempo, gravita em torno das circunstâncias e das vontades do PT. Para esse grupo, essa acomodação pode significar uma sentença de morte, junto ao eleitorado, além de um esvaziamento fatal de um discurso político naturalmente antipetista.
Num primeiro momento, Guilherme Boulos reagiu com o fígado. Disse, em nota, que a oposição a Lula será feita pelo bolsonarismo, lado em que nem ele nem o Psol vão estar. Tentou, assim, interditar o debate com um argumento de autoridade que pegou muito mal, mesmo entre os que concordam com ele. Mais tarde, também em entrevista à Folha de S.Paulo, amenizou o tom e colocou o debate nas quatro linhas das disputas internas, segundo ele, ainda a serem decididas pela direção do Psol.
A fratura, no entanto, já está exposta.
*Leandro Fortes/ DCM