Com documentos falsos, atirador usa ‘laranjas’ para comprar 11 fuzis e outras 13 armas e negocia com facções criminosas

Com documentos falsos, atirador usa ‘laranjas’ para comprar 11 fuzis e outras 13 armas e negocia com facções criminosas

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Estelionatário se aproveitava de falhas no sistema de controle e usou até nome do porteiro para revender armamento a quadrilhas de traficantes. Ao todo, ele comprou 24 armas.

Segundo O Globo, em 7 de maio de 2021, o porteiro Douglas Silva Santos recebeu duas encomendas em sua casa, na Zona Sul de São Paulo. Numa das caixas que chegaram pelo correio, havia um fuzil modelo T4, calibre 5,56, da Taurus. Na outra, uma pistola .380, da mesma fabricante. As duas armas valem mais do que dois anos do salário de R$ 1,2 mil de Santos. Esse detalhe passou despercebido quando, semanas antes, a Taurus recebeu, por e-mail, um certificado de registro de caçador, atirador esportivo e colecionador (CAC) em nome do porteiro, com uma autorização de compra, documento do Exército que aprova a venda. As armas foram postadas sem que a veracidade dos documentos fosse verificada. Logo depois de chegarem à casa do porteiro, caíram nas mãos de uma quadrilha responsável por desviar armamento para facções do tráfico do Rio e de São Paulo.

Santos não era CAC e nunca tinha dado um tiro. Segundo a Polícia Civil de São Paulo, ele era laranja de um esquema que usou brechas no protocolo de venda da Taurus e no controle do Exército para despejar fuzis no mercado clandestino. Todos os documentos enviados à empresa eram falsos. O mentor da fraude era seu compadre, Vanderson Oliveira Cardoso — ele, sim, um atirador desportivo certificado. Cardoso usava seu registro de CAC para falsificar documentos para a compra de armas. Com um editor de imagens, apagava os dados originais e os substituía pelas informações dos laranjas. Tudo era enviado por e-mail para a Taurus, que enviava as armas pelo correio.

Com essa estratégia simples, de acordo com a polícia, o atirador estelionatário comprou pelo menos 24 armas só no primeiro semestre de 2021 e conseguiu revender 12 delas — 11 fuzis e uma pistola — a grupos criminosos. A distribuição rendeu à quadrilha mais de R$ 400 mil. Os fuzis eram comprados por R$ 11 mil e revendidos por valores até quatro vezes maiores. Quando desvendou o esquema, a polícia acionou a Taurus e conseguiu recuperar dez armas que ainda não haviam sido entregues. A Justiça determinou a incorporação dos fuzis ao acervo da polícia paulista.

O esquema foi posto em prática graças à política armamentista do governo Jair Bolsonaro. Uma portaria publicada pelo Exército em 2019 permitiu que CACs passassem a poder usar e comprar fuzis. No mesmo ano, um decreto do presidente deu permissão para que atiradores desportivos pudessem comprar até 30 destas armas. Desde setembro a facilidade foi proibida. Uma decisão do ministro Edson Fachin ratificada pelo restante do Supremo Tribunal Federal determinou que a compra de armas de uso restrito só pode ser autorizada “no interesse da segurança pública ou da defesa nacional, não em razão do interesse pessoal”. Mas a decisão não afetou as armas que já fazem parte do acervo dos CACs, que seguem com autorização para usá-las e transportá-las para clubes de tiro.

Segundo o inquérito sobre o esquema, o porteiro disse aos investigadores em depoimento que recebeu R$ 500 de seu compadre para fornecer seus dados para a compra das armas e receber e repassar as encomendas. No momento de formalizar o depoimento, no entanto, Santos teria sido orientado por seu advogado a permanecer em silêncio. Desde julho do ano passado, Douglas está preso. Ele é uma das cinco pessoas que, segundo o Ministério Público de São Paulo, integravam a quadrilha de Cardoso — que está foragido.

Outra integrante é a mulher do atirador, Michelle Neri de Lucena, cujos dados também foram utilizados para confeccionar documentos falsos e a compra de um fuzil. Por decisão da Justiça paulista, ela responde ao processo em liberdade. Fora o compadre e a mulher de Cardoso, outras sete pessoas identificadas como laranjas não sabiam que seus dados estavam sendo usados. Entre elas, estão duas ex-namoradas e um amigo com quem o CAC jogava bola no bairro onde morava. Chamados para prestarem depoimento, todos disseram que não eram CACs, nunca frequentaram clubes de tiro nem compraram fuzis. Alguns moravam no interior paulista e sequer conheciam Cardoso. Não se sabe como seus dados foram parar nas mãos do atirador.

A investigação começou com um vídeo enviado à Delegacia de Investigações Sobre Entorpecentes de Taboão da Serra, que mostrava dois homens fazendo disparos para o alto com fuzis em Embu das Artes, na Grande São Paulo. O CAC Vanderson Cardoso foi identificado como um dos atiradores, e a Justiça determinou que fosse feita uma busca em sua casa. No imóvel, foram apreendidos um celular, um notebook e notas fiscais de compras de armas em nomes de laranjas, documentos de identidade e um fuzil, modelo T4, da Taurus, registrado em nome de Cardoso. Uma consulta ao Exército revelou que a arma havia sido comprada com documentos falsos — mesmo tendo autorização para comprar um fuzil na época, o CAC fez uso da fraude. No computador do atirador, a polícia encontrou amostras de documentos falsificados e, em seu celular, diálogos para a revenda das armas.

— Havia conversas do Vanderson com dois traficantes de armas que faziam repasses a duas facções no Rio e em São Paulo — conta o delegado Milton Barbosa Filomeno, para quem a brecha descoberta por Cardoso pode ter sido usada por outras quadrilhas. — Havia uma falha de comunicação entre a Taurus e o Exército.

Em março de 2021, o Exército passou a emitir os certificados de registro com um QR Code, que permite a checagem da veracidade. Na época das compras de Cardoso, esse tipo de documento era raro. Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, a fraude mostra a fragilidade do controle do Exército aos CACs.

— Não existe outra alternativa que não seja auditar todas estas vendas direto da fábrica, e exigir que a empresa preste conta da legalidade de cada fuzil que deixou a fábrica.

A Taurus afirmou que cumpre a lei e só entrega armas após as autorizações do Exército”. A empresa alega que nunca cometeu qualquer irregularidade com esses documentos e autorizações e argumenta que, no esquema descoberto pela polícia, as “irregularidades tiveram origem no processo de concessão de autorizações, sobre o qual a Taurus não tem nenhuma responsabilidade”. Após a publicação da reportagem, o Exército, também por meio de nota, afirmou que o certificado de CAC de Vanderson Cardoso foi cancelado a pedido da Polícia Civil de São Paulo e que o “Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados (SFPC) está em constante evolução para se adequar as demandas legais, alterando seus protocolos a fim de evitar desvio de conduta e ilegalidades”.

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