O ex-decano do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello chamou nesta terça-feira (3) de “juridicamente imprestável” o indulto do presidente da República Jair Bolsonaro que livrou o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) da pena de oito anos e nove meses de prisão imposta pelo plenário da Corte.
Procurado pela equipe da coluna, Celso de Mello disse que a medida de Bolsonaro viola a Constituição e expõe um “desvio de finalidade” do mandatário.
Segundo ele, o objetivo do decreto está “completamente desvinculado do interesse público” e não obedece ao requisito da impessoalidade dos atos administrativos.
No último dia 21 de abril, após o STF condenar Silveira por ameaças de contra ministros e ataques contra o regime democrático, Bolsonaro editou um um decreto concedendo o perdão presidencial ao deputado.
Considerado uma afronta por integrantes do tribunal, o indulto tensionou ainda mais as relações entre o presidente e a Corte.
Na semana passada, o presidente ainda recebeu deputados no Palácio do Planalto para um “ato pela liberdade de expressão” que na prática funcionou como desagravo a Silveira.
No dia seguinte, diante dos sinais de irritação dos magistrados, o chefe do Executivo alegou que não quis “peitar o Supremo” e sim desfazer uma “injustiça”.
Para Celso de Mello, o indulto a Silveira tem “múltiplos vícios de inconstitucionalidade, como ofensas patentes aos princípios da impessoalidade, da separação de poderes, da moralidade, tudo a pôr em evidência o claro (e censurável) desvio de finalidade que contamina e transgride o coeficiente de validade desse decreto juridicamente imprestável”. Mello atuou no STF por 31 anos e presidiu o tribunal entre 1997 e 1999.
Mesmo afastado das atividades diárias do STF, Celso de Mello ainda mantém forte influência sobre a Corte.
É bem próximo, por exemplo, da ministra Rosa Weber, relatora de seis ações (movidas por partidos políticos e parlamentares) que contestam o indulto.
A ministra, que assume a presidência do STF em setembro, ficou com parte da equipe de Mello após a aposentadoria do colega em outubro de 2020 – e, conforme mostrou o GLOBO, passou a proferir decisões mais incisivas nos últimos meses.
Na segunda-feira retrasada, 25, ela deu 15 dias para o governo justificar o decreto. O prazo termina dia 10 de maio. Se ao final ela decidir seguir a opinião do decano, poderá suspender o decreto e submeter a decisão para referendo dos colegas.
“A prática desviante de conduta ilegítima, como essa em que Bolsonaro incidiu, revela-se, no caso desse inconstitucional decreto presidencial, pela prova inequívoca de que o chefe de Estado, não obstante editando ato revestido de aparente legalidade, valeu-se desse comportamento político-administrativo para perseguir e realizar fins completamente desvinculados do interesse público”, acrescentou o ministro aposentado.
Na avaliação de Celso de Mello, o desvio de finalidade no caso do indulto se revela um “vício gravíssimo apto a contaminar a validade jurídica do ato estatal”, “inquinando-o (manchando-o) de nulidade”.
Celso de Mello também rechaça uma das principais linhas da defesa da Advocacia-Geral da União (AGU), que sustenta que o indulto é uma prerrogativa de Bolsonaro que não pode ser revista por outro poder.
Para ele, mesmo os atos que são prerrogativas do presidente estão sujeitos ao controle do Poder Judiciário. Negar essa possibilidade, portanto, é uma “típica característica de regimes autocráticos, que temem o controle de seu comportamento por juízes e tribunais independentes”, reprovou o ex-decano.
Mello destaca que é legítima a atuação da Justiça na análise de “qualquer ato estatal”, se houver transgressão à Constituição, como ocorre no caso do indulto que beneficiou Daniel Silveira.
“Essa orientação, além de antiga e correta, traduz posição consagrada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como o revela julgado da nossa Corte Suprema proferido no final do governo do Marechal Hermes da Fonseca, ocasião em que o STF, em 23 de maio de 1914, assim se pronunciou : ‘(….) Desde que uma questão (de governo ou de natureza política – observação minha) está subordinada a textos expressos na Constituição, deixa de ser questão exclusivamente política e, em consequência, expõe-se ao controle do Poder Judiciário’”, afirmou o magistrado, um dos que mais conhece a história da Corte e seus milhares de precedentes.
*Malu Gaspar/O Globo