A percepção sobre uma crise em andamento na democracia brasileira e o senso de urgência de analisar o movimento conservador que alcançou o país, após franca expansão em outras nações, levou o governo do presidente Jair Bolsonaro para o topo da lista de estudos no ambiente acadêmico. Levantamento do laboratório DATA_PS, que reúne pesquisadores da UFRJ e da UFF, feito a pedido do GLOBO, mostra que o atual ocupante do Palácio do Planalto foi protagonista de 373 artigos ao longo dos três anos de mandato, 159 apenas em 2021.
A análise encontrou 1.154 textos desde 1988, com base na produção científica indexada em algumas das principais bases de artigos do mundo (Web of Science e SciELO), e levou em consideração os governantes eleitos pelo voto direto: além de Bolsonaro, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer — também mandatário no período pós-redemocratização, José Sarney foi alçado ao poder por meio de votação indireta.
Os textos, em geral, são em português, mas há também conteúdos em inglês e espanhol. O volume centrado no atual presidente representa, por exemplo, uma produção quatro vezes maior do que as 86 publicações sobre o governo Lula, que teve oito anos de mandato, e também é superior na mesma proporção aos 83 artigos a respeito de Dilma, que iniciou a gestão em 2011 e sofreu impeachment em 2016.
Segundo o coordenador do projeto e professor da UFRJ Antonio Brasil Jr e os pesquisadores Francisco Kerche e Lucas Carvalho, todos autores do levantamento, é natural que cada novo governo eleve o interesse científico por sua análise. Porém, após o impeachment de Dilma e, principalmente, a eleição de Bolsonaro, surgiu um “sentido de urgência” nos cientistas sociais brasileiros a respeito da natureza, efeitos e sentidos do atual ciclo político.
“Se tomamos as publicações dos artigos referentes a cada presidente apenas durante o período de seus mandatos, vemos que o esforço de se analisar o governo Bolsonaro ainda no ‘calor da hora’ supera os dos demais presidentes. Talvez estejamos diante de certa ‘urgência’ por parte dos analistas para compreender a emergência de movimentos conservadores ao redor do mundo”, explicam os especialistas no estudo.
A partir de metadados (títulos, resumos, referências e palavras-chave) coletados nos artigos, os pesquisadores encontraram temas comuns que perpassam as análises dos diferentes governos. “Política internacional”, por exemplo, é o principal assunto que aparece entre diversas gestões.
Já os assuntos específicos relacionados ao perfil de cada administração e seu contexto registram um crescimento vertiginoso de interesse com a queda de Dilma, em 2016, quando as atenções se voltam para preocupações internas do país. Em artigos sobre esse período, os trabalhos tratam do contexto que marcou a crise política da época, como sugerem os termos “Lava-Jato” e “impeachment” associados a essas produções.
E essa tendência explode no governo Bolsonaro, com uma disparada de análises focadas em tópicos como crise da democracia, populismo, autoritarismo, extrema direita, direitos humanos, Amazônia e povos indígenas — todos relacionados a questões sensíveis à atual administração.
Tanto essas temáticas quanto o boom de análises feitas no calor do momento convergem com a percepção de autores de estudos sobre Bolsonaro — além de profissionais do mercado editorial (cujas publicações não foram contabilizadas no levantamento) — a respeito do atual momento da produção intelectual no país.
A cientista política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Marjorie Marona é uma das organizadoras do livro “Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política”, que reuniu artigos de alguns dos principais antropólogos, sociólogos, cientistas políticos e economistas do país. Ela aponta para uma confluência entre as análises de diferentes especialistas.
“São múltiplas perspectivas teóricas e metodológicas que têm como fundo a constatação de que estamos num processo de degradação interna da democracia, do tensionamento das regras do jogo e das instituições por um projeto de poder autoritário”, diz a pesquisadora.
Flavio Moura, que editou pela Todavia livros sobre a ascensão de Bolsonaro ao poder, como “A república das milícias”, de Bruno Paes Manso, e “O cadete e o capitão”, de Luiz Maklouf, diz que a turbulência política gera um interesse maior dos leitores sobre obras que analisam o contexto atual, o que engaja o mercado editorial em torno dessas publicações.
“A gente nota especialmente desde 2019 o aumento de interesse não só em torno de livros sobre Bolsonaro, mas tratando da crise da democracia em geral, por conta de (Donald) Trump, nos Estados Unidos também. E na esteira disso vêm todos cientistas políticos e intelectuais públicos tentando entender e querendo publicar sobre esse fenômeno”, analisa Moura.
Essas interpretações são compartilhadas tanto por autores com posicionamento político mais à esquerda quanto de direita, como Michelle Prado, que votou em Bolsonaro em 2018 e no ano passado lançou, de forma independente, o livro “Tempestade ideológica — bolsonarismo: a alt-right e o populismo i-liberal no Brasil”. Na obra, ela narra de dentro da bolha das redes sociais de direita o surgimento de grupos radicais de apoio ao atual presidente.
Michelle ressalta um aspecto, também citado por outros autores, a respeito do atual momento da produção de literatura sobre Bolsonaro: quem se dedica a trabalhar com o tema é muitas vezes arrastado para um ambiente hostil, de perseguição e ameaça.
“Sofro assédio online coordenado toda semana. É uma espécie de seita, inspirada na far-right americana. Quando atacam, todos participam”, destaca a escritora.