Uma cena importante do filme “Não olhe para cima”, sucesso da Netflix, mostra os cientistas Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) levando à presidente dos Estados Unidos uma notícia catastrófica. Um enorme cometa se aproxima da Terra em alta velocidade e, a menos que as grandes potências tomem providências urgentes, o planeta será destruído. Após o impacto da informação, a presidente (personagem vivida por Meryl Streep) anuncia o que fará, para desespero dos cientistas que esperavam medidas imediatas: “Vamos esperar e avaliar”.
O método da governante fictícia, que trata de forma displicente um problema que está prestes a causar milhões de mortes, tem paralelo na vida real. Desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou uma vacina da Pfizer contra covid-19 para as crianças de 5 a 11 anos, o ministro da Saúde do Brasil, Marcelo Queiroga, faz de tudo para adiar o momento em que o imunizante será aplicado nos meninos e meninas.
Sua ideia “genial” para protelar a vacinação em crianças foi propor uma ridícula consulta pública aos leigos e uma insólita audiência pública sobre assunto pacificado há décadas. Diante do risco do coronavírus, que matou desde o início da pandemia cerca de 300 pequenos brasileiros, o ministro da Saúde absurdamente diz: “Vamos esperar e avaliar”.
A segunda parte dessa estratégia protelatória, a audiência pública, foi realizada hoje.
Fazer um encontro desse tipo para discutir se uma vacina aprovada pela Anvisa contra a covid-19 deve ser ou não aplicada em crianças de 5 a 11 anos é mais ou menos como montar um seminário para debater se os efeitos da lei da gravidade são reais ou não. Ou seja, é uma imbecilidade.
Apesar disso, com toda a paciência, cientistas de alta qualidade aceitaram dividir seu tempo com profissionais negacionistas escolhidos a dedo pelo ministro Queiroga, pela deputada Bia Kicis (PSL-DF) e seu grupo bolsonarista. A Anvisa avisou que não iria se fazer representar, já que tudo o que tinha a informar está nas notas técnicas que aprovaram a vacina.
O que se viu na audiência pública foram Roberto Zeballos (imunologista), Roberta Lacerda (infectologista) e Augusto Nasser (neurocirurgião), conhecidos defensores do delirante tratamento precoce, cumprirem o papel que cabe aos negacionistas: jogar dúvidas sobre a segurança da vacina e sobre a gravidade da pandemia.
As falas dos cientistas sérios, como os representantes da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e Associação Médica Brasileira (AMB), entre outros, não deixaram dúvidas (se é que alguém sensato as tinha): é preciso vacinar as crianças o quanto antes. Dados de especialistas e entidades de renome internacional, além dos melhores profissionais brasileiros, indicam isso.
Uma das principais participações foi a do infectologista Marco Aurélio Sáfadi, integrante da SBP, que chamou atenção para a alta taxa de letalidade entre as crianças infectadas pelo coronavírus, 7%. A taxa de mortalidade, destacou, é maior que a registrada em doenças como meningite, influenza ou distúrbios diarreicos. Em contrapartida, o acompanhamento de 8 milhões de meninos e meninas vacinadas nos Estados Unidos mostrou que a ocorrência de miocardite entre os imunizados é de 11 casos em 8 milhões, todos de evolução clínica favorável. Uma quantidade de casos de miocardite muito menor que os causados pela própria covid-19.
Ao fim, a ampla maioria dos expositores se mostrou a favor da vacina para crianças de 5 a 11 anos.
Deu a lógica.
Não havia necessidade de qualquer consulta ou audiência pública para que se chegasse a essa conclusão.
Está previsto para amanhã o anúncio da posição oficial do Ministério da Saúde.
Tudo resolvido? Nada disso.
A essa hora, Marcelo Queiroga e os bolsonaristas devem estar pensando em outras formas de “esperar e avaliar”. Mesmo que isso seja feito ao custo da exposição de crianças ao risco de contrair covid-19, doença que, como se viu, representa possibilidade de morte maior que outras doenças infantis.
Queiroga e o presidente Jair Bolsonaro parecem não se importar com isso.
*Chico Alves/Uol