Os programas de auditório da TV aberta – que seguem firmes e fortes com telespectadores fiéis e acríticos – parecem, sob o olhar de quem tem o mínimo de noção do ridículo, um pedaço de passado medonho que se integra ao presente mais ou menos como uma esquizofrenia coletiva.
A receita do patrão tóxico + assistente de palco gostosa e burra inacreditavelmente ainda funciona muito bem em pleno Século XXI. Quer uma prova? A audiência que se mantém em programas como o do Ratinho e do Silvio Santos.
Silvio está para Ratinho assim como Ellen Ganzarolli está para Milene Pavorô. Seus papéis na TV, muito bem definidos, embora se pretendam e se façam parecer espontâneos, são, na verdade, teatrais e um tanto quanto forçados.
No caso de Pavorô, a coisa fica ainda mais burlesca: o sotaque do interior propositalmente destacado ajuda a montar o personagem da gostosa burra, que, tal qual um bobo da corte, se submete a pequenas (e grandes) humilhações no palco a fim de divertir um público desqualificado (no sentido literal da palavra, sem ofensas).
A esquizofrenia é tanta que apresentadores como esses – facilmente comparáveis aos carniceiros pseudojornalistas como Datena – já nem são contestados por gente sensata.
As pessoas já não se dão ao trabalho, e incorrem no erro rude de tratá-los como velhos senis aos quais ninguém dará ouvidos (spoiler: muita gente dá ouvidos).
Silvio Santos foi machista na TV? Tudo bem, é só o Silvio Santos, ele é assim mesmo. Ratinho incitou assassinato de uma mulher usando uma metralhadora em rede nacional? Normal, faz parte do show.
Não, você não leu errado. O apresentador bolsonarista Carlos Massa, conhecido como Ratinho, se superou esta semana no quesito sensacionalismo barato.
Ratinho ameaçou metralhar deputada
Durante o seu programa de rádio “Turma do Ratinho”, ao vivo, o locutor leu uma notícia sobre um Projeto de Lei da petista que propõe alterar os termos “marido e mulher” na celebração de casamentos civis, substituindo a frase “vos declaro marido e mulher” por “firmado o casamento”, para incluir as uniões civis de pessoas homossexuais e transexuais que não se enquadram nas definições de “marido e mulher”.
O projeto de Lei tem sido erroneamente atribuído à deputada Natália Bonavides, o que lhe rendeu ataques misóginos por parte do apresentador:
“Natália, você não tem o que fazer? Vá lavar roupa, vai fazer algo, a lavar as caixas do seu marido, a cueca dele. Isso é uma imbecilidade. A gente tem que eliminar esses loucos. Não dá pra pegar uma metralhadora?”
Quando foi que naturalizamos a incitação ao crime (que é, por si só, um crime) na mídia?
O que parece “apenas” apelação rasteira pra conseguir audiência – porque é assim que programas como este sobrevivem, à base de baixaria – é, na verdade, uma verdadeira incitação ao linchamento de uma mulher.
Ataques sensacionalistas de antipetismo como este são comuns nos programas de Ratinho, seja na TV ou no rádio: uma estratégia rasteira que, infelizmente, continua funcionando. Mas a violência embutida nesse comentário – uma violência que parte obviamente da misoginia característica de bolsonaristas estúpidos como Carlos Massa – decerto jamais seria usada contra um homem, mesmo que se tratasse de um homem petista – Ratinho não tem colhões pra mandar um homem lavar as calcinhas da esposa.
Pra gente como ele, misoginia é estratégia de comunicação. É assim que ele se comunica com o seu público porque – aceitemos – é disso que esse público gosta. Basta reparar – de novo – no tratamento dispensado às assistentes de palco obrigadas a fazer a linha gostosa-e-burra.
O tratamento grosseiro e constrangedor – um verdadeiro banho de vergonha alheia – dispensado a essas mulheres é apenas a ponta do iceberg. Por trás dele existe a objetificação de seus corpos e, de vez em quando, a violência física também.
Ratinho agrediu assistente de palco em 2016
Em 2016, Ratinho chutou a própria assistente de palco, Milene Pavorô, na nuca. O chute foi disferido contra uma caixa de papelão sob a qual Milene estava escondida (sim, é claro que Ratinho sabia que ela estava lá).
Estamos falando de violência verbal e física contra mulheres empregada como entretenimento em pleno Século XXI. Você compreende a gravidade disso?
O fato é que, quando admitimos que gente como Ratinho e Silvio Santos fale toda sorte de absurdos poque “eles são assim mesmo”, o resultado só pode ser esse. Eles vão ainda mais longe, cada vez mais longe, até que possam bater em uma mulher em rede nacional – primeiro usando o disfarce muito mal-acabado de uma caixa de papelão, e depois (em breve, eu aposto), sem o menor disfarce ou constrangimento.
Mulheres como Milene Pavorô e Ellen Ganzarolli são colocadas em uma posição de objetificação tão profunda, que se torna admissível que sejam agredidas gratuitamente em rede nacional. Ou isso, ou jamais terão espaço em emissoras como SBT e Record.
Nesses espaços, elas são apenas seus corpos.
E é claro que é incômodo – em certo ponto, inaceitável – que mulheres aceitem esta posição e colaborem com a normalização da misoginia na TV. Mas é certo e compreensível que se trata tão somente de uma tentativa de viver e trabalhar.
O erro, é evidente, não está nelas. Está na normalização da misoginia que se constrói e fortalece toda vez que um absurdo como esse chega até o grande público e não é rechaçado no nível em que deveria ser.
Gente como Ratinho e Silvio Santos deveria ser dura e incansavelmente criticada todos os dias, até que víssemos se esvair a última gota de sua popularidade. Erradicar esse tipo de “entretenimento” deveria ser uma prioridade para nós, progressistas. Mas continuamos dizendo “é só o Ratinho, quem liga pro Ratinho?”
Fora da sua bolha progressista intelectualóide, muita gente liga. E muita mulher segue, de uma forma ou de outra, apanhando.
*Por DCM