Novo procurador do Tribunal Penal Internacional vai decidir se investiga Bolsonaro por violar direitos dos índios na pandemia, além de delitos ambientais.
José Casado, Veja – Na quarta-feira, o advogado britânico Karim Asad Ahmad Khan QC, de 50 anos, assume a Procuradoria-Geral do Tribunal Penal Internacional em Haia, na Holanda.
É um organismo relativamente novo, com 19 anos de existência, jurisdição permanente e reconhecida por mais de 120 países das Nações Unidas, entre eles o Brasil, para investigar, processar e julgar indivíduos acusados de crimes contra os direitos humanos.
Khan, eleito em fevereiro, terá um mandato de nove anos num tribunal habitualmente criticado pela concentração em casos de políticos africanos.
Ele assume com uma pilha de casos pendentes. Terá de decidir, por exemplo, se abre ou não uma investigação preliminar contra Jair Bolsonaro e seu governo por “violação dos direitos dos povos indígenas que constituem crimes contra a humanidade”.
O risco para Bolsonaro no TPI é percebido no exterior há meses. Em maio de 2019, como relatou ao Itamaraty o então embaixador brasileiro em Tel Aviv, Paulo Cesar Meira de Vasconcellos, o primeiro ministro israelense Benjamin Netanyahu — derrubado ontem pela oposição — reconheceu o “risco real de que o presidente Bolsonaro venha a ser investigado naquele tribunal por genocídio de povos indígenas”. A correspondência diplomática está no acervo da CPI da Pandemia e foi revelada pelos repórteres Yasmim Perna e Alexandro Martello, da TV Globo.
A mais recente denúncia contra Bolsonaro foi apresentada no último 21 de dezembro por Raoni Metuktire, chefe da tribo Kayapó, do vale do rio Xingu, Almir Suruí, líder dos Paiter-Suruí, que vivem entre Mato Grosso e Rondônia, e a associação Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Eles são representados pelo advogado francês William Bourdon.
Bolsonaro já havia sido denunciado ao TPI por crimes contra a humanidade pelo fracasso governamental — supostamente deliberado — na política de saúde que influenciou na propagação da Covid-19. Até ontem, haviam morrido 487 mil brasileiros — número duas vezes e meia maior que o de vítimas da bomba atômica em Hiroshima, na IIª Guerra Mundial. O tribunal descartou essas acusações de genocídio.
Porém, admitiu para avaliação da procuradoria a denúncia de perseguição e extermínio, generalizado e sistemático, de Bolsonaro contra uma parte da população — os povos indígenas. É a primeira vez que o TPI aceita analisar um caso contra um presidente brasileiro.
O novo procurador-geral vai decidir se abre uma investigação preliminar contra Bolsonaro por
ação intencional e grave contra direitos básicos dos índios na pandemia, com supressão de serviços de saúde pública, restrições na assistência alimentar e deslocamento forçado de pessoas nas áreas que habitam, reconhecidas na Constituição brasileira.
Além disso, há a acusação de ações sistemáticas do presidente em crimes ambientais, sobretudo na Amazônia.
Ecocídio é um tipo penal novo legitimado pelo Parlamento Europeu no início deste ano, que recomendou seu enquadramento na legislação criminal dos integrantes da União Europeia, com jurisdição do Tribunal Penal Internacional.
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O governo de Emmanuel Macron saiu na frente, estimulando o debate parlamentar na França, que deve regulamentar punições ao crime de ecocídio até 2023.
Uma decisão de Khan sobre o caso dos índios contra Bolsonaro vai levar tempo. O suficiente, por exemplo, para verificação dos resultados da CPI da Pandemia, do Senado. E, também, dos desdobramentos da ação no Supremo Tribunal Federal, aberta em 29 de junho do ano passado, quando índios pediram intervenção judicial para obrigar o governo a levar serviços de saúde às tribos indígenas amazônicas.
A resistência governamental se confirmou numa série de respostas evasivas — também registradas na denúncia ao Tribunal Penal Internacional.
Desde então, o juiz Luis Roberto Barroso, do STF, tem determinado que o governo apresente um plano de proteção à saúde indígena. Nos últimos doze meses, foram entregues quatro versões, todas questionadas pelo Supremo. Os índios continuam morrendo de Covid-19, mas até agora o governo não fez nada do que foi prescrito sair do papel para a vida real na selva.
Os problemas se agravam. Neste semestre, garimpeiros, madeireiros e seus financiadores intensificaram invasões quase simultâneas em diferentes terras indígenas, áreas reconhecidas na Constituição como bens da União inalienáveis, indisponíveis e com direitos imprescritíveis dos índios habitantes.
Em maio, Barroso mandou a Polícia Federal preparar a proteção nas áreas mais atacadas. Como a polícia depende do apoio logístico das Forças Armadas, o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviou um pedido ao Ministério da Defesa.
A Defesa respondeu de forma burocrática: “Sobre o assunto, esse Estado-Maior Conjunto informa que aguarda a disponibilização de recursos extraordinários (…) Dessa forma, o apoio previsto ser postergado, condicionado ao recebimento dos referidos créditos”.
Em despacho na primeira semana de junho, o juiz do Supremo escreveu: “Registro com desalento o fato de que as Forças Armadas brasileiras não tenham recursos para apoiar uma operação determinada pelo Poder Judiciário para impedir o massacre de populações indígenas.”
O desfecho desse processo com Barroso tende a ocorrer em breve, provavelmente antes da decisão do procurador-geral do Tribunal Penal Internacional.
Se Khan achar necessário avançar numa investigação preliminar, Bolsonaro terá de se defender e vai ficar exposto como acusado de crimes contra a humanidade em mais de uma centena de países integrantes do TPI — incluindo o Brasil.
O preço político nesses casos costuma ser alto, como podem testemunhar vários líderes africanos denunciados, investigados e processados. Em geral, os ritos no tribunal de Haia ultrapassam o tempo de duração dos mandatos dos governantes. Eles são surpreendidos quando já estão na planície, bem longe do poder.