O Brasil da pandemia é um campo de mortes e o Rio de Janeiro, epicentro da carnificina. O estado que forjou politicamente Jair Bolsonaro e Wilson Witzel, paladinos na brutalidade, banalizou a barbárie. Ontem, uma mal explicada operação da Polícia Civil prendeu seis pessoas e deixou 25 mortos, entre os quais um policial, na favela do Jacarezinho, Zona Norte da capital. Em um dia, o equivalente a um terço das mortes confirmadas por coronavírus na comunidade; foram 79, desde março de 2020, segundo o Painel Rio Covid-19. Foi a mais letal intervenção oficial de agentes da lei da História do estado, segundo o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF). Foi também o segundo maior assassinato coletivo já registrado em território fluminense — no primeiro, conhecido como Chacina da Baixada, criminosos executaram 29 pessoas em duas cidades, Nova Iguaçu e Queimados, em março de 2005.
Enquanto parte do planeta se ocupa da vida — não faz dois dias, o presidente Joe Biden anunciou inédito apoio dos EUA à quebra temporária de patentes de vacinas contra a Covid-19 —, o Brasil empilha corpos. Em 14 meses de pandemia, o país ultrapassou 415 mil vidas ceifadas na combinação nefasta do vírus aos atos e omissões do presidente da República, o 01 do morticínio, como já demonstrado no par de depoimentos dos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich à recém-iniciada CPI no Senado Federal. O Estado do Rio se aproxima de 46 mil óbitos por Covid-19, com taxa de letalidade de 5,96% dos infectados, o dobro da média nacional. Na capital, onde até ontem 24.495 pessoas perderam a vida, praticamente um em cada dez doentes (8,9%) não sobrevive.
Uma semana atrás, o estado afastou em definitivo o governador eleito na onda bolsonarista de 2018. Witzel ficou 20 meses no cargo; no primeiro ano, 2019, a polícia fluminense matou 1.814 pessoas, recorde da série histórica iniciada na última década do século XX. Ano passado, com pandemia e tudo, a escalada homicida das forças policiais levou à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender operações em favelas. De junho a setembro, primeiros quatro meses de vigência da determinação, as mortes por agentes da lei despencaram 71% (de 675 em 2019 para 191 em 2020), segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ). Tudo isso sem prejuízo dos indicadores de homicídios e crimes contra o patrimônio, que seguiram em queda no estado.
De outubro em diante, já com Cláudio Castro interinamente no Palácio Guanabara e Alan Turnovsky como secretário de Polícia Civil, os números voltaram a subir. Bateram recorde (453) no primeiro trimestre deste ano. O mapeamento do Geni/UFF para a Região Metropolitana do Rio mostra que, desde a decisão do STF na ADPF 635, operações policiais deixaram 823 mortos. “Do total, 150 ocorreram entre junho e setembro. Já o primeiro trimestre de 2021 foi o pior da série, com 404 mortes”, sublinha o pesquisador Daniel Hirata. Nos dez meses, houve 22 operações policiais com três ou mais vítimas fatais, chacinas, portanto; 14 delas foram de janeiro a março deste ano.
No Brasil e no Rio, morre-se pela peste, pela bala da polícia e do crime. Morrem policiais, civis inocentes, criminosos e suspeitos sem julgamento. Morre gente de fome, sem oxigênio, sem atendimento médico. Mulheres morrem pelas mãos de maridos, companheiros, namorados e ex. Uma criança morre espancada por padrasto e mãe, bebês perdem a vida por golpes de facão. Homens negros morrem asfixiados por seguranças de supermercados ou são entregues a traficantes por tentar furtar peças de carne.
A violência desmedida tem produzido luto de um lado, indiferença de outro. Em qualquer sociedade comprometida com o direito à vida e com o Estado Democrático de Direito, um presidente lunático, incompetente ou necrófilo já teria sido apeado do cargo diante da hecatombe social, sanitária e funerária provocada pelo enfrentamento débil à mais grave pandemia em um século. No entanto ele segue no palácio dizendo impropérios, ameaçando instituições, atacando opositores, debochando da ciência, provocando parceiros comerciais, destruindo o meio ambiente, assinando decretos de armas. Em nenhuma unidade da Federação, governador ou chefe de polícia resistiriam à maior chacina da História. Aqui, gados que somos, assistimos silenciosamente ao extermínio dos corpos, predominantemente pretos e pobres, qualquer que seja a tragédia.
*Flávia Oliveira/O Globo