Sem plano de imunização, verba das vacinas paga gasto com operação de inteligência do Exército

Sem plano de imunização, verba das vacinas paga gasto com operação de inteligência do Exército

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Além disso, governo financia campanha de tratamento precoce e mantém no ar manual para uso de cloroquina.

Era segunda-feira de Carnaval e o presidente Jair Bolsonaro foi abordado por jornalistas ao final de um passeio de moto em São Francisco do Sul, em Santa Catarina, onde passava o feriado. No mesmo dia, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM), anunciara que teria de interromper a imunização contra a Covid-19 por falta de vacinas. Bolsonaro mencionou que tinha um cheque de 20 bilhões de reais para a compra de vacinas, em falta no mercado.

Menos de uma semana depois, com o país se aproximando de 250 mil mortos pela doença e o plano de imunização atrasado, o governo usou parte do “cheque” em despesas secretas do Centro de Inteligência do Exército. Foram 150 mil reais de gastos “de caráter sigiloso”, lançados em 22 de fevereiro nos registros do Tesouro Nacional. O destino do dinheiro aparece anotado resumidamente: operação de inteligência, plano de imunização.

O “cheque” a que o presidente se referiu é uma autorização extraordinária de gastos de 20 bilhões editada em dezembro para financiar a compra de doses suficientes para vacinar a população contra o coronavírus e cobrir gastos com a logística da imunização. Desse total, 8,4 bilhões de reais haviam sido comprometidos até a quarta-feira, 24. A maior parte desse dinheiro (5,8 bilhões de reais) foi reservada para o Instituto Butantan, por 100 milhões de doses da CoronaVac, até aqui o principal pilar do programa de imunização, depois de meses sendo preterida por Bolsonaro.

No mesmo dia do registro dos gastos secretos, o governo reservou dinheiro para a compra de 20 milhões de doses da indiana Covaxin e 10 milhões de doses da russa Sputnik V, produzida em conjunto com o laboratório brasiliense União Química e defendida por lobby de aliados do Planalto no Congresso. Um total de 2,3 bilhões de reais foi reservado para a compra das doses, mesmo sem o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para essas vacinas. Não há registro de reserva de dinheiro para a vacina das farmacêuticas Pfizer e BioNTech, já liberada pela Anvisa, embora a versão do Plano Nacional de Imunização contra o coronavírus apresentada ao Supremo Tribunal Federal em dezembro já contasse com 70 milhões de doses desse imunizante.

Questionado sobre o objetivo da ação de inteligência na vacinação contra o coronavírus, o Comando do Exército respondeu que a atividade é resguardada por sigilo e “constitui instrumento de assessoramento no mais alto nível decisório”. O Ministério da Saúde informou que o pedido para a operação não partiu do general Eduardo Pazuello, que comanda a pasta.

Enquanto as atenções se voltavam para o programa de imunização, o Tesouro Nacional registrou, em fevereiro, o desembolso de 5,1 milhões de reais da verba para o enfrentamento da pandemia em campanha publicitária que estimula o tratamento precoce. Essa quantia (que não faz parte do “cheque” de 20 bilhões de reais) é parte do custo da campanha veiculada entre outubro e dezembro, segundo a Secretaria de Comunicação da Presidência, com a hashtag #naoespere e a mensagem “quanto mais cedo começar o tratamento, melhores as chances de recuperação”. O custo total da campanha foi de quase 20 milhões de reais, valor superior ao gasto na compra de seringas e agulhas para o programa de imunização e com a logística da distribuição das vacinas. As emissoras Record e SBT receberam os maiores pagamentos para veicular a propaganda.

Nesta quinta-feira, 25, o Ministério da Saúde mantinha no ar orientação para o uso de cloroquina e do antibiótico azitromicina no tratamento precoce da Covid-19. O manual foi lançado em 11 de agosto, quando Eduardo Pazuello ainda era ministro interino da Saúde, e não foi revogado nem substituído por nenhuma outra orientação da pasta, embora o general negue que tenha recomendado o uso dos medicamentos.

Durante o Carnaval, entre aglomerações que promoveu em Santa Catarina, Jair Bolsonaro voltou a defender a prescrição de remédios sem comprovação científica para o tratamento da Covid-19.

O documento assinado pelo ministro Paulo Guedes para justificar o “cheque” de 20 bilhões de reais, em 16 de dezembro, insistia na urgência da imunização para conter a transmissão do vírus, reduzir o número de mortos e as “demais repercussões sociais e econômicas” da doença. Mas só no final da primeira semana de janeiro o governo reservou dinheiro para comprar do Instituto Butantan as primeiras 46 milhões de doses da chinesa Sinovac, que Bolsonaro passara meses impedindo o governo de comprar. No intervalo de um dia, o governo também reservou dinheiro para importar 2 milhões de doses de vacinas da AstraZeneca do laboratório indiano Serum.

Essas compras permitiram o início da imunização no país, mas não encobriram problemas no planejamento que o governo fizera no segundo semestre de 2020. Nesse período, além de recusar a compra da CoronaVac, o governo desembolsou 2,2 bilhões de reais num acordo com a farmacêutica AstraZeneca e com a adesão à Aliança Global de Vacinas, o Covax Facility, uma iniciativa apoiada pela Organização Mundial da Saúde, conforme revelou a piauí. O apoio financeiro ao desenvolvimento de vacinas deveria garantir prioridade no acesso a doses, mas isso não aconteceu. O programa nacional de imunização só teve início em 18 de janeiro e com doses da CoronaVac compradas do Butantan, um dia depois do início da vacinação em São Paulo.

As primeiras doses do acordo da AstraZeneca com a Fiocruz só começam a ser distribuídas na segunda quinzena de março. A fundação espera alcançar 210,4 milhões de doses neste ano, 110,4 milhões delas já a partir da produção nacional do principal insumo, a partir de agosto. O Ministério da Saúde evita divulgar novas previsões de datas para as vacinas do consórcio Covax Facility. A previsão de entrega 14 milhões de doses a partir de março caiu para um total de 10,6 milhões de doses no primeiro semestre do ano. O custo total dos dois acordos celebrados entre setembro e outubro de 2020 é de 4,5 bilhões de reais.

Dados detalhados sobre os gastos públicos deveriam estar disponíveis para a consulta da população no Portal da Transparência, mantido pela Controladoria Geral da União. Mas a atualização dos dados está suspensa desde 31 de dezembro. A CGU informou que a divulgação foi suspensa por causa de uma mudança no sistema do Tesouro Nacional. A previsão inicial era de que as consultas fossem liberadas a partir de fevereiro, mas isso ainda não havia acontecido faltando três dias para o final do mês. A piauí obteve as informações sobre os gastos para o enfrentamento da pandemia em 2021 diretamente do Tesouro.

Com base nessas informações, é possível estimar o custo de cada dose de vacina comprada pelo governo federal. O contribuinte paga 58 reais por dose, no caso da CoronaVac, mais que o dobro dos 28,60 pagos pela dose da vacina da AstraZeneca fabricada na Índia. O menor preço ainda é o da vacina da AstraZeneca produzida em parceria com a Fiocruz, estimado em menos de 10 reais por dose. As vacinas do consórcio Covax Facility chegarão a um custo de pouco mais de 59 reais por dose, preço pouco superior ao da CoronaVac. A Sputnik e a Covaxin têm os maiores preços até aqui: a vacina russa custa pouco mais de 69 reais, enquanto a indiana custará 80,70 por dose.

Uma análise do movimento dos gastos entre 1º de janeiro e 24 de fevereiro mostra que não foram registradas novas despesas com o enfrentamento da pandemia fora do programa de imunização, apenas o pagamento de gastos lançados anteriormente, como a campanha publicitária do atendimento precoce. As despesas autorizadas para a vacinação (24,5 bilhões de reais) por meio de três medidas provisórias diferentes representam 38% do total de gastos do Ministério da Saúde com a pandemia. Dos gastos previstos com a imunização, 11,2 bilhões de reais já foram reservados e apenas 2,8 bilhões de reais foram pagos. O governo segue sentado em cima de 13,3 bilhões de reais.

Marta Salomon/Piauí

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