O ano de 2020 certamente entrará para a História. A pandemia do Novo Coronavírus, um vírus cuja origem permanece incógnita e que não teve nenhuma abordagem político-epistemológica de repercussão na grande imprensa determinou os rumos da sociedade do Capital no ano de 2020 e preparou as bases para o chamado “novo Normal”. Num espetáculo da Biopolítica, uma onda de reestruturações celebradas como “responsáveis” no campo da Política e Economia foram levadas adiante em escala planetária, tudo sob a alegação de preocupação das autoridades e da sociedade civil em geral com a saúde pública. Quando esta discussão é trazida à tona de forma crítica em geral ela é rechaçada, afinal como diz o jargão, “não se pode politizar a pandemia”, pessoas estão adoecendo e morrendo – portanto – não há espaço nenhum para analisar nada. É necessário obedecer e realizar as tarefas determinadas pelas instâncias competentes e quem reclama será taxado sumariamente de insensível. Vivemos na sociedade do Vigiar e Punir onde os próprios pares disciplinam uns aos outros, denunciam uns aos outros – algo similar a um regime totalitário onde a disciplina e a repressão se dão em escala horizontal, sem ao menos a necessidade de um vetor ditatorial exclusivo, ou seja, os próprios membros da sociedade se autorregulam no sistema moral requerido.
Esta visão de que a pandemia está separada da análise política é, em primeiro lugar, covarde e cínica. Tudo pode e deve ser examinado com cuidado, não se pode aceitar tudo de forma calada, sem crítica dialética. Alguém que pense o contrário disso já está adaptado ao “novo Normal” que determina uma sociedade acrítica e obediente. Michel Foucault se estivesse vivo estaria admirado e assustado com a realidade teorizada em suas obras no século XX. Em segundo lugar, a contra resposta a estes argumentos seria de que “estão vendo maldade em tudo hoje em dia, que exagero!”. Afinal, o vírus é um vírus – ou seja – um “ente” em separado da sociedade e sua dinâmica social de poder. Esta visão está alinhada à ideia equivocada de que existiria um Mundo “normal” e outro Mundo “político” e que uma dimensão não está relacionada com a outra. Quanto engano! Quem pensa isso obviamente não compreende a sociedade!
De fato, o Novo Coronavírus é uma fenômeno natural como todos os outros vírus ao longo da História. Entretanto, isso não anula, de forma alguma, a interferência e repercussão política deste na sociedade uma vez que o vírus acomete diretamente os seres humanos. Se afeta os seres humanos, o vírus tem repercussão política, não há como escapar da política! E se não escapa da política, não escapa de análise crítica! São estas repercussões políticas que são frequentemente ignoradas sob as alegações de que o Mundo da Pandemia é um Mundo “neutro”. Repentinamente, para alguns, o Mundo da pandemia é aquele onde as diferenças teriam sido anuladas, todos estão numa “força-tarefa” em prol da Humanidade e quem não estiver, obviamente precisará de um descarrego. Este pensamento Hollywoodiano é um pensamento de colonização mental, de ilusão, alienação ou até má fé.
Sobre a suposta responsabilidade das autoridades públicas com a Saúde pública – algo que chamou a atenção em vários países do Mundo – em particular no Brasil – pouquíssimas análises críticas foram realizadas. Em primeiro lugar, quando o hashtag “Fique em Casa” foi martelado por todos os meios de comunicação disponíveis, a ideia que circulou é que todas as pessoas deveriam obedecer esta determinação como se na sociedade não existissem diferenças, ou seja, todas as pessoas teriam condições de se isolarem no conforto de suas casas enquanto a tempestade passa lá fora. Este pensamento cínico ignorou a existência de moradores de rua e trabalhadores que abastecem a sociedade com todos os recursos necessários para a subsistência contemporânea. Tão logo este júbilo do pensamento burguês atingiu um pico, veio o discernimento lógico e estratégico de que “nem todos poderiam se isolar” e que aqueles que não se isolam são os heróis, aquela sensibilização barata de rede social que se vê nos dias atuais. Foi a maneira com que foi possível purificar, via redes sociais e grande Imprensa, a consciência coletiva depois de um primeiro momento de júbilo.
“Viremos a página”, o problema de “todos” já foi consertado. Nem todos podem se isolar, pronto. Obviamente, não se deveria virar a página aqui. Esta primeira determinação disciplinadora do “Fique em Casa” já deveria ter suscitado algum um exame crítico de quem afinal de contas pensa a sociedade. Somos uma sociedade onde todos podem ou só alguns podem? Qual o papel do Estado nesta dinâmica social existente? E mais do que isso, como é possível conceber uma determinação como esta que terceiriza a responsabilidade do surto de Coronavírus para a sociedade e mascara a responsabilidade do Estado que há anos drena para fora os recursos dos postos de saúde pública? Estas indagações anulam por completo toda e qualquer determinação do Estado ou da Imprensa monopolista sobre o que fazer ou não na Pandemia. E, além disso, o Estado nunca se preocupou com Saúde Pública de fato tendo inclusive aprovado no Congresso Nacional em 2017 a PEC dos gastos públicos que congelou de forma covarde e criminosa o orçamento público destinado à Saúde e Educação. Como o Estado estaria então preocupado com a saúde das pessoas? Com qual moral o Estado poderia se colocar no lugar de determinar isolamento social? Estes temas não repercutiram em praticamente nenhum círculo analítico de forma pública, massiva e sincera.
Assunto varrido para debaixo do tapete. Ao varrer este tópico para debaixo do tapete, a Revolução da Barbárie pôde se estabelecer com robustez. A Revolução da Barbárie também pode ser conhecida com outros nomes como “Reset Mundial” ou a inserção forçada e em larga escala do “Ultraliberalismo”, a fase mais agressiva e abertamente excepcional do sistema econômico do Capital. O Ultraliberalismo que atualizou o Neoliberalismo já se desenvolvia no período Pré-Pandemia. Este sistema tornou-se uma necessidade já na era Pós-Crise de 2008 e passou por uma década de adaptações políticas regionais em diversos países do Mundo – incluindo o Brasil que foi forçado a aderir ao esquema em 2016 com a consumação de um câmbio forçado de regime político. A mudança de regime precipitou a adoção em série de várias medidas de desertificação econômica e política, justificadas no campo ideológico e propagandístico como “combate à corrupção”. Já na era Michel Temer, uma série de medidas foram tomadas no sentido de estabelecer um protetorado no Brasil comprometido com a venda de ativos públicos brasileiros para bancos internacionais.
As manobras ilegais e desleais de canibalismo econômico propiciam uma alavancagem da especulação financeira, da concentração brutal de Capital e da tentativa de recuperação forçada da taxa média de lucros, tema, aliás, responsável pela intermitente e aguda crise do Capital. A crise do Capital responde por dois processos simples: a capacidade produtiva avançada dos dias atuais em contraste com a queda vertiginosa no poder de compra da sociedade assalariada global, um movimento estrutural e conjuntural ao mesmo tempo. Entretanto, a resolução do problema é tentada através da contenção de custos produtivos ao mesmo tempo em que se cria uma legião de desempregados, um enorme exército de desalentados e informais precarizados que mal conseguem sobreviver. Obviamente esta fórmula não resolve os impasses do Capitalismo, é necessário um “Reset” do sistema, algo que seja capaz de criar medo, disciplina social e novos hábitos de consumo; abastecidos com crédito é claro. Não é à toa que o sistema de Auxílio emergencial foi implantado no Brasil e em diversas partes do Mundo e quem irá pagar pelo Auxílio emergencial é o próprio povo, não há aqui nada de redistribuição de renda. O pagamento virá mediante novas reformas austeras que rebaixarão às condições de vida dos trabalhadores às piores existentes. O Auxílio emergencial não tem a função apenas de resgatar os miseráveis produzidos pela ordem do Capital e agravados na Pandemia, a ideia do auxílio emergencial é providenciar o mínimo necessário para um boom do consumo básico mínimo em meio a uma Crise de Superprodução de Capital. O auxílio emergencial não é uma política econômica keynesiana que visa “dar dignidade” aos trabalhadores. O auxílio emergencial é um mecanismo de Estado para evitar o colapso do Sistema econômico Mundial. Em essência, esta é a discussão feita no âmbito do Fórum Econômico Mundial que já tratava a necessidade de um “Reset Mundial” na Economia publicamente há alguns anos. Que timing perfeito! A Pandemia assegurou este objetivo.
No Brasil, as políticas de desertificação econômica e capacidade de superexploração intensiva da sociedade e da natureza já estavam em pleno desenvolvimento antes da Pandemia. A questão é que mesmo no Brasil, o processo não se dava de maneira integral. É necessário subordinar mais ainda a sociedade num rumo que se deseja alcançar. Vários setores da sociedade em um país golpeado e valioso como o Brasil ainda não estavam preparados para o Ultraliberalismo na sua plenitude. O setor de serviços que é o setor mais avantajado do país necessitava de um super estímulo para mudar métodos e práticas adaptadas à Revolução Industrial 4.0. Pela via legal, as mudanças no Congresso Nacional poderiam levar décadas além de estarem sujeitas a obstáculos que diminuiriam a velocidade das reestruturações ultraliberais. Este é um desafio mesmo em um país neutralizado pelos EUA no Golpe de Estado de 2016. Nada mais adequado que uma situação de emergência forte o bastante para determinar um novo código de conduta.
A Pandemia forçou o trabalho remoto, o uso exacerbado e inédito dos recursos de software que impulsionaram não somente uma contenção inédita de custos operacionais como também propiciou um isolamento físico da divisão social do trabalho, impedindo qualquer mobilização contra e facilitando a monitoria dos funcionários que passaram a ser operadores impessoais sem tempo determinado de trabalho, ou seja, estão online 24 horas por dia à disposição das atividades requeridas. Quando seria possível em “condições normais” emplacar este objetivo que as grandes instituições financeiras globais desejavam? A Pandemia é uma bênção para os banqueiros como nunca antes, por isso a Pandemia é candidata a permanecer na sociedade por tempo indeterminado – mesmo com vacinas. Afinal, a Pandemia é um recurso importante para os câmbios políticos e econômicos desejados.
No campo da Educação, a Pandemia forçou a implementação do Ensino Híbrido ou Blended learning. A jogada não só facilitou uma racionalização eficiente dos custos operacionais dos serviços educacionais (tanto na rede pública quanto privada) como também possibilitou incitar o ensino impessoal, agora o ensino é um produto frio e antissocial: uma mercadoria negociada totalmente alienada das relações sociais, como se a formação de um ser humano não dependesse do convívio com os outros. O convívio, se houver, deve ser à distância – transformando os alunos em obedientes operadores de softwares sem criticidade, sem empatia, sem identidade e sem percepção de pertencimento a um grupo social. O sistema do Capital conseguiu impor o seu jugo de bloquear o movimento estudantil enquanto sopro de esperança política. Mas não é nada pessoal, a preocupação é com a “saúde pública”, alegam os defensores.
A questão é que órgãos e instituições Mundo afora já anunciam que o Ensino Híbrido veio para ficar como já anunciado entusiasticamente pela própria agência estatal de notícias, a EBC/Agência Brasil em artigo intitulado “Ensino híbrido é tendência para vida escolar no mundo pós-pandemia” veiculado no dia 14 de Julho deste ano. E há quem diga que este governo atual é contra o “isolamento social”, como se o governo e os aparatos de poder estivessem nas mãos exclusivas de uma peça caricata e até dispensável do executivo chamado Jair Bolsonaro, cuja substituição estratégica é discutida abertamente pelos setores que detém o poder político de fato.
O fato é que preocupação com a saúde da população em meio à pandemia não é real. Passada a Pandemia, o Ensino Híbrido ficará com a desculpa de que; “o que veio, veio para ficar e ponto”. O problema de saúde posteriormente, se houver entre a comunidade aprendente será uma geração deprimida, antissocial, acrítica e reificada. É de causar espanto entre a classe do professorado bem como no âmbito das representações de classe que nada seja dito a respeito. Pelo contrário, o assunto é visto como “notícia boa”, o ensino híbrido premiará o professor que mais se adequa ao regime, numa competição ultraliberal entre os docentes para ver quem é mais obediente e quem mais faz firula com os softwares, sem que qualquer discussão seja levantada sobre se todos os softwares, tecnologias e métodos são importantes ou não na formação de um ser humano íntegro. A mesma lógica se destina aos alunos que disputarão rendimentos em função de uso de aparato tecnológico, ignorando-se qualquer outro método de aprendizagem. É o triunfo do competição Ultraliberal selvagem. A discussão aberta sobre se a tecnologia é decisiva ou não para o aprendizado, ao que tudo indica, ficou para trás. Todos os artigos com pontos e contrapontos sobre métodos de ensino foram jogados fora, o que vale agora é o ensino à distância. Em qual outra oportunidade esse corolário poderia ser implantado na ausência da Pandemia? O aprendizado para valer será secundário e “ai” de quem critica afinal qualquer voz crítica contra o que se tem feito na pandemia em termos de suposta preocupação com saúde é mal visto. Que tristes gerações de professores têm se formado em nosso país! Esta tragédia social é uma bola de neve que se multiplica.
Vozes como a do filósofo italiano Giorgio Agamben são isoladas na Academia. Agamben é um dos poucos que se preocuparam e tornar pública a sua preocupação com a hipertrofia dos regimes de exceção da Pandemia em artigo publicado no início de 2020. Em sua análise, Agamben desmascara a tônica de preocupação relembrando a hipocrisia do sistema. Um sistema político e econômico como este é TUDO menos preocupado com saúde alheia. O que justifica a política do isolamento e do medo? Seria medo da classe dominante de se contaminar? A classe dominante se quer divide os mesmos espaços físicos com a classe dos dominados, de quem quer mais é que morra. A classe dominante que tem o poder real de comunicação e mecanismos de Estado justifica a sua política de isolamento porque quer impor uma determinada política e uma nova sociabilidade que lhe interesse e não porque está preocupada com a saúde da base social. Mesmo que não tivesse nenhuma medida de isolamento social, a classe dominante dispõe de condições objetivas claras e fáceis de isolar-se dos contaminados. Então não existem motivos para que todos aceitem rapidamente as teses determinadas pela Organização Mundial da Saúde, a mesma que faz parte da ONU que virou instituição proficiente em ignorar tragédias sociais como a do genocídio de Ruanda em 1994. Que preocupação a OMS e a ONU têm com as pessoas? Esta instituição que dissimula trazer a “paz global” faz tudo menos atingir o objetivo a qual se propõe na realidade. Pelo contrário, a ONU é a garantia que o poder político e econômico do Mundo se mantenha a ferro e fogo em pé sem que isso pareça maldoso o bastante, afinal em Nova York está sediada a ONU – que “resolve qualquer parada”.
Acima de tudo, o ativo mais valioso da Pandemia é a multiplicação do medo. O medo sempre foi um mecanismo de poder importante ao longo da História humana. O medo coloca os atores sociais na defensiva, afinal, o que há lá fora? Em que outro momento seria possível impor refluxo e defensiva na classe trabalhadora mundial em meio ao Colapso do sistema que não o surgimento do Novo Coronavírus? Talvez a melhor descrição para o mecanismo de implementação de um regime de exceção globalizado – ao mesmo tempo em que se impõem as reestruturações ultraliberais – seja a popularização do medo. Um medo que vá além do antigo medo suscitado pelo Terrorismo internacional. O medo dos terroristas, inimigos incógnitos à espreita em células “adormecidas” Mundo afora e que justificaram atos verdadeiramente terroristas como o Ato Patriótico dos EUA e as guerras de conquista no Oriente Médio; o Novo Coronavírus é o mecanismo amedrontador da vez que incrimina nações adversárias como a China (suposta origem do Covid-19), deixam todos dóceis e aceitem as determinações à que lhes são impostas, assim se justifica um Estado de Exceção permanente, sem que ninguém se atreva a duvidar ou questionar.