Poucas cidades do mundo poderiam ser cenário de uma cerimônia como a vista nesta sexta-feira (26) na abertura das Olimpíadas de Paris 2024. A beleza urbana das margens do Rio Sena, com sua coleção de monumentos arquitetônicos que deslumbraram até Hitler, — que trocou o bombardeio por um desfile pelas ruas da cidade —, justificam a coragem de tirar a festa olímpica dos estádios para as ruas. No entanto, assumir esta ousadia francesa, significa bancar os riscos enormes que se impõem. Paris 2024 conseguiu mostrar competência para tanto, mostrando um espetáculo emocionante para o mundo.
Apesar do sucesso sob a chuva torrencial do verão europeu, sob as potenciais ameaças de segurança e todas as dificuldades habituais desse tipo de evento, é difícil medir como foi assistir o evento presencialmente ou pela televisão. Ambas as alternativas implicaram em um painel fragmentado e parcial do que acontecia no solo parisiense. A chuva foi capaz de atrapalhar até mesmo a visão de quem assistia pela mediação das câmeras molhadas. Mas é preciso celebrar o mérito da edição das imagens que conseguiu construir o suspense, o mistério, a graça, a tensão, a sensualidade, a diversão e a emoção do caos de palcos que se dispersavam pelos 6 km do trajeto pela cidade.
A delegação verde e amarela desfilou sua alegria pelo Sena na passagem do barco Le Bel Ami (O belo amigo). O medalhista olímpico Isaquias Queiroz, da canoagem de velocidade, e a capitã da equipe de rugby, Raquel Kochhann, que derrotou um câncer de mama, foram os porta-bandeiras do Brasil. O Brasil comparece com 277 atletas de 13 modalidades. Um dos pilares na formação de atletas brasileiros, o Bolsa Atleta completa 20 anos em 2024 e atende mais de 9 mil bolsistas. Além disso, o Brasil chega pela 1ª vez na história com uma delegação formada majoritariamente por mulheres.
O roteiro foi dividido em 12 partes, cada uma representada por uma palavra que encarna o espírito olímpico e a alma francesa (Encanto, Sincronia, Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Sororidade, Esportividade, Festividade, Escuridão, Solidariedade, Solenidade e Eternidade). Desta forma, a cerimônia transpirou os melhores valores franceses, assim como suas contradições. De quebra, representou a Europa Ocidental contemporânea, em meio a suas guerras, hipocrisias, vacilos e omissões. A bandeira da Comunidade Europeia foi hasteada com orgulho por Emmanuel Macron, como demonstração da afirmação de uma conquista em risco.
Até o ápice com os tricampeões olímpicos franceses Marie-José Perec, do atletismo, e Teddy Riner, do judô, acenderem juntos a pira olímpica, que iluminou os céus como base de um grande balão, os franceses mostraram competência e brilho. A apoteose foi muito bem construída ao som do “L’Hymne à l’amour” (Hino ao Amor) na voz de Céline Dion, com a pira olímpica iluminando o céu. A canção conhecida na voz icônica de Edith Piaf foi cantada do alto da Torre Eiffel pela canadense, sob enorme expectativa de como estaria sua voz, após a doença que a impediu de cantar, há dois anos. Para Celine, não havia melhor forma de voltar a cantar.
Logo no início, ainda com o sol da noite de verão, Lady Gaga se apresentou cantando “Mon Truc en Plumes” (“Minha cena em plumas”), numa homenagem à tradição do cabaré. A banda de metal Gojira e a cantora de ópera Marina Viotti se apresentaram juntos expressando a quebra de paradigmas culturais dos franceses. Houve ainda apresentações comoventes de piano (e voz) debaixo de um bombardeio de água pluvial, dando ainda mais beleza ao espetáculo. A indefectível Imagine, de John Lennon, foi cantada assim, com o piano em chamas sob a chuva.
Um mascarado foi o condutor do revezamento da chama. A cantora francesa Axelle Saint-Cirel entoou A Marselhesa, hino da França, representando a Marianne – figura símbolo da Revolução. As performances se seguiram, divertindo com a simulação do roubo da Mona Lisa, no Museu do Louvre, e um desfile de modas característico que cidade que inventou o padrão que se espalhou pelas Fashion Weeks pelo mundo.
Uma das imagens impressionantes que ficam na memória é a mulher cavalgando um cavalo mecânico de metal pela extensão do Sena, seguindo um cavalo branco de verdade, pela passarela do Trocadero em frente à torre Eiffel. O show de luzes envolveu a torre.
A cerimônia celebrou 10 ícones femininos franceses, incluindo a filósofa Simone de Beauvoir; Simone Veil, uma sobrevivente de Auschwitz que defendeu os direitos ao aborto na França; Louise Michel, uma ativista política do século XIX e líder do movimento anarquista francês; Olympe de Gouges, uma reformista social e dramaturga do século XVIII; Alice Milliat, uma pioneira do esporte feminino; Gisele Halimi, uma advogada e feminista tunisiana-francesa; e Alice Guy, a primeira cineasta, entre outras. Essas mulheres foram homenageadas como parte do quadro Sororidade. Elas foram representadas por 10 estátuas douradas emergindo do Sena. A última vez que Paris sediou as Olimpíadas de Paris, em 1902, havia apenas 2% de atletas femininas.
O campeão do mundo de futebol Zinédine Zidane passeou com a tocha que abriu a cerimônia, revezando-ao final com o tenista espanhol Rafael Nadal, que disputará suas últimas Olimpíadas. A tocha ainda foi tocada pela ginasta romena Nadia Comaneci, o velocista americano Carl Lewis e a tenista americana Serena Williams, em um barco balançante. A tenista francesa Amélie Mauresmo recebeu a tocha em terra firme e a levou até o francês Tony Parker, da NBA, que a repassou para três atletas paralímpicos. Uma série de medalhistas franceses foi passando a chama de mão em mão até Teddy Riner e Marie-José Perec. Os dois tricampeões acenderam juntos a pira, que subiu aos céus na base de um balão ao som da voz de Céline Dion.
Controvérsias
Muitas críticas ecoaram pelo mundo, como é natural em eventos ousados e globais como esse. Mas há muito que admirar também. Foram 300 mil pessoas nas margens do rio, a maioria assistindo a cerimônia de graça. Difícil saber o que realmente viram de seu ponto de foco, molhados até os ossos. Mas a democratização tem seu encanto. Qualquer pedacinho dessa cerimônia vista ao vivo vale o esforço. Da Ponte de Austerlitz até o Trocadero, aos pés da Torre Eiffel, 85 barcos navegaram levando delegações, autoridades e celebridades balançando sobre as águas. Numa Olimpíada, são estes atletas hasteando as bandeiras de 205 países que merecem ser vistos. O resto é enfeite.
A Rússia e Belarus foram oficialmente banidas das Olimpíadas 2024 por conta da guerra da Ucrânia, embora a russofobia venha de bem antes disso. Apenas 15 atletas estão em Paris, e não podem usar nenhum símbolo nacional, inclusive o hino russo (substituído por Tchaikovsky). O país não compete sob sua bandeira oficial desde as Olimpíadas do Rio em 2016, por exigência da Agência Mundial Antidoping (WADA). O documentário Ícaro, da Netflix, revela a dimensão da controvérsia deste tema, demonstrando que o problema não é apenas russo, afinal o personagem que dá origem às investigações é o ciclista americano Lance Armstrong. As Olimpíadas em Paris sequer serão exibidas no país.
Agora, a justificativa para sanções ainda mais drásticas é a invasão bélica da Ucrânia, com procedimentos que se parecem com segregação por nacionalidade. Ignoraram-se, em todos os âmbitos diplomáticos, as reivindicações de auto-defesa da Rússia. Apesar do país seguir respeitando as regras internacionais de conflitos militares, o genocídio palestino promovido por Israel e provado no Tribunal Penal Internacional, não gera qualquer represália, mas, em vez disso, proteção. Os Comitês da Palestina e do Irã pediram a exclusão de Israel, em meio aos 40 mil mortos na Faixa de Gaza, no que foi ignorado, diz o Vermelho..
A hipocrisia e falta de isonomia evidente se expressa conforme os EUA nunca tenham sofrido sanções do COI em casos de invasões e guerras. Esse dado específico revela o alinhamento ocidental em torno dos EUA contra a Rússia, uma potência econômica e militar que precisa ser contida até mesmo nos esportes. O que tem funcionado, conforme a falta de financiamento e estímulo tem devastado os esportes olímpicos do país. O próprio Putin tem denunciado a hipocrisia e o duplo padrão ocidental em todas estas questões, inclusive esportivas.
A China sabe que pode ser o próximo alvo da hegemonia geopolítica dos EUA sobre o COI. Segunda maior economia do mundo, a China está prestes a alcançar os americanos em números de medalhas de ouro. Constantemente acusada pela tradicional retórica ocidental contra países não-alinhados de ser uma ditadura, de não respeitar direitos humanos ou as regras do comércio internacional, a China avança contra a desigualdade a partir de um modelo econômico totalmente distinto de desenvolvimento, a partir de um orientação socialista, baseada numa estratégia regulada pelo poderoso estado chinês governado pelo Partido Comunista. Assim, o PIB chinês se aproxima do poder de compra dos americanos.
A polêmica mais visível nas redes sociais, no entanto, representou os novos tempos de ultra-direita e conservadorismo, alvo de disputa inclusive na França. A representação queer do quadro “A Última Ceia” de Leonardo da Vinci, reuniu drag queens famosas da França. Dois homens se beijaram, a famosa modelo trans Raya Martgny desfilou, entre outros modelos não-binários, tudo ao som da música da DJ francesa Barbara Butch, militante feminista e lésbica.
E não foi tudo, houve um longo trecho do roteiro (Liberdade), em que o tema “Amores parisienses” colocou em cena “uma Paris em que o desejo se afirma e se expressa”, segundo o documento do desenvolvimento do espetáculo. Após uma “coreografia sensual e aérea que evoca como se gera o desejo”, interpretada por dançarinos com roupas inspiradas nas cores da bandeira LGBT+, dois homens se beijaram e um trio amoroso se trancou em um quarto. Ousadias nunca vistas numa cerimônia para bilhões de telespectadores, inclusive de países de maioria muçulmana.
A eurodeputada francesa Marion Marechal, da família Le Pen, reagiu criticando as imagens de Maria Antonietas decapitadas, do triângulo amoroso se beijando, das drag queens, a feiura das roupas e coreografias exibidas no desfile, e da “humilhação da Guarda Republicana obrigada a dançar com Aya Nakamura”. A deputada que faz parte de um grupo político extremista que defende valores opostos aos que consagraram a França pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade, considerou as cenas “lacração grosseira”.