Criada há quase 50 anos por um anúncio de cigarros, a legislação informal é baseada em levar vantagem em tudo, caso típico da família do ex-presidente.
Marginal, digo, sempre à margem das quatro linhas da Constituição, o capitão Jair Bolsonaro tem gabaritado também o Código Penal, sob acusações de desvio de joias do patrimônio da Presidência da República, fraude em documentos públicos (cartão de vacina), genocídio na pandemia de Covid 19, interferência na PF, Receita Federal, golpe de Estado e um varejão de outros 600 processos na Justiça — a conta é do seu próprio partido, o PL.
Desde que infringiu o código disciplinar do Exército (15 dias de prisão em 1986), o ex-presidente tem provado que só consegue obedecer a uma única lei no Brasil, a Lei de Gerson, a de quem leva vantagem em tudo, certo?
Desde o primeiro mandato como deputado federal, no começo dos anos 1990, foi acusado de iniciar a prática da rachadinha (nome singelo do crime de peculato), modelo depois inserido na vida dos filhos Carlos (vereador do Rio) e Flávio (senador fluminense).
Mas que diabos de lei é essa que Jair obedece? Não tentem encontrá-la na Constituição. Muito menos no Código Penal. Explico.
A Lei de Gérson surgiu em 1976, depois da campanha da agência Caio Domingues & Associados para a marca Vila Rica. No comercial de tv, o craque da Seleção Brasileira exaltava as qualidades do produto: “É gostoso, suave e não irrita a garganta. Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro?”
Até aí, tudo bem. O que pegou mesmo foi a mensagem final, quando o boleiro, com um sorriso maroto, olha para a câmera e diz: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!”
Coitado de Gérson, não merecia a maldição de ter o nome associado a esta lei popular e informal, porém infame.
Em campo, o jogador foi considerado o cérebro do time tricampeão do mundo de 1970. Combativo, ético, leal e capaz de dribles e lançamentos espetaculares, o meio-campista nunca usou de artimanhas ou malandragens para passar a perna nos adversários ou ludibriar os colegas de equipe. Não praticou nada disso que acostumamos testemunhar no repertório de jogadas do clã Bolsonaro.
“Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”.
A frase do comercial pegou como um vírus. Em poucos dias de exibição, os brasileiros repetiam aquele slogan em várias situações do cotidiano, sempre no sentido de tirar proveito — assim a lei informal é mantida até agora.
Detalhe: o atleta já havia se aposentado quando gravou a propaganda. Foi escolhido por ser realmente um fumante de prestígio. O torcedor estava habituado a vê-lo com cigarro em fotos antes das partidas e até em intervalos de jogos, cenas comuns à época.
A frase interpretada pelo craque era repetida nos botecos pés-sujos e nos restaurantes de luxo, mas o uso da expressão “Lei de Gerson” só foi consolidada nos anos 1980, quando o repórter Maurício Dias, da revista semanal “IstoÉ” a utilizou em uma entrevista com o psicanalista pernambucano Jurandir Freire Costa.
Para o publicitário Eduardo Domingues, diretor da agência responsável pelo anúncio, o sentido antiético só ganhou força em 1981, quando a revista “Exame” deu o título “Lei de Gérson” a uma reportagem sobre a quebradeira do banco BrasilInvest, uma mutreta do empresário Mario Garnero.
A mesma agência ainda tentou reduzir o efeito negativo com um novo comercial. “Levar vantagem não é passar ninguém para trás, é chegar na frente”, explicava o reclame. Tarde demais. A lei que não saiu das nossas casas legislativas — e sequer foi escrita em algum lugar — já estava entranhada na sociedade brasileira.
O “Canhotinha de Ouro” jamais pensou que a sua atuação fora de campo pudesse render tanta polêmica. “Eu fiz uma propaganda, fui um artista ali, como tantos outros. A ideia foi essa, a de levar vantagem em tudo porque esse cigarro era mais barato que os outros. Todo cigarro é igual, não é? Mas esse aqui é melhor porque é mais barato”, desabafou Gérson, em 2016. “Aí eles pegaram essa vantagem como se fosse pernada nos outros, passar os outros para trás. É a lei do Gérson. Lei do cacete, porra. Não tenho nada com isso aí.”
Na sua carreira no futebol, Gérson de Oliveira Nunes, nascido em Niterói (RJ) em 1941, jogou pelo Flamengo, Botafogo, São Paulo e Fluminense. Comentarista esportivo, passou pelas rádios Globo e Bandeirantes, além dos canais de TV CNT/Gazeta e Band. Seu trabalho atual é na Super Rádio Tupi, do Rio de Janeiro.
“Lei do cacete, porra”, como disse o craque no desabafo. A única lei que o ex-presidente Bolsonaro costuma obedecer.
*Xico Sá/ICL