Ao tentar impor sua visão obtusa para mobilizar sua base e tentar desgastar o governo Lula, a extrema direita conseguiu a proeza de extrapolar o próprio grau de radicalismo misógino e punitivista — que já é alto — ao lançar mão do projeto de lei que equipara o aborto após 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio, mesmo em casos de estupro.
Enquete disponível no site Câmara mostrou que 88% dos votantes (702.345, até o início da tarde desta sexta-feira, 14) discordam totalmente da proposta. Apenas 12% concordam totalmente (92.668).
Os que concordam na maior parte (2.070), os indecisos (303) e os que discordam na maior parte (3.275) não chegaram a pontuar percentualmente.
O resultado vai ao encontro das mais diversas opiniões contrárias ao projeto, manifestadas nas ruas, nas redes, na grande maioria dos veículos de comunicação, por movimentos, entidades e especialistas ligados ao tema, principalmente após o requerimento de regime de urgência para a tramitação do texto ter sido aprovado, “a toque de caixa”, na última quarta-feira (12), sob o comando do presidente da Câmara, Arthur Lira.
Considerando a enquete e essas manifestações, é possível concluir que, embora o Brasil seja um país majoritariamente conservador em questões morais, como a legalização do aborto, a proposta dos bolsonaristas e da bancada da Bíblia parece ter ultrapassado os limites até de quem se identifica mais com o espectro ideológico à direita.
Afinal, além de punir quem faz o procedimento após o período estabelecido, se aprovada, a proposta pode impor condenação maior à vítima do que ao estuprador e vai atingir, sobretudo, as meninas, que são a parcela mais violentada da população.
“Cidadão de bem”
Importante destacar que o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor dessa “pérola” da desumanidade, é teólogo de profissão e pastor evangélico, o típico homem branco, “cristão” e reacionário que insiste em ditar normas que afetam a vida das mulheres — não a dele.
Este mesmo “cidadão de bem” deixou claro que está usando um tema de tamanha gravidade para criar desgastes com o governo e tentar afastá-lo dos segmentos religiosos. “Será um bom teste para o Lula provar aos evangélicos se o que ele assinou na carta era verdade ou mentira” , declarou Cavalcante, considerando a possibilidade de aprovação da proposta.
O pastor deputado se referia à carta do presidente, dirigida à comunidade evangélica ainda em 2022, na qual, entre outros pontos, destacava: “Sou pessoalmente contra o aborto e lembro a todos e todas que este não é um tema a ser decidido pelo Presidente da República e sim pelo Congresso Nacional”.
O projeto em pauta, vale destacar, não trata de legalizar aborto, mas de retroceder 84 anos em dois direitos conquistados pelas mulheres nos anos 1940: o de poder abortar em situações de estupro e de risco de vida à mulher. A possibilidade de fazer o procedimento em casos de anencefalia fetal foi acrescentada em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Diante da repercussão negativa da aprovação do requerimento, o próprio autor tentou, ao seu modo peculiar, amenizar o estrago dizendo que pensa, também, em propor aumentar a pena para os estupradores, como se essa “compensação” resolvesse o problema das meninas e mulheres violentadas.
Muita gente já sabe, mas não custa lembrar: de acordo com o Anuário 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 o Brasil registrou o maior número de estupros da história, com cerca de 205 casos por dia, num total de quase 75 mil vítimas (89% do sexo feminino), crescimento de 8,2% em relação a 2021.
Desse total, quase 57 mil foram estupros de vulneráveis e as principais vítimas, 61%, têm entre zero e 13 anos. A grande maioria, 68%, foi violentada em sua própria casa, 86% por gente conhecida — sendo 64%, por familiares.
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves alertou que “o Brasil delega a maternidade forçada a essas meninas vítimas de estupro, prejudicando não apenas o futuro social e econômico delas, como também a saúde física e psicológica. Ou seja, perpetua ciclos de pobreza e vulnerabilidade, como o abandono escolar”.