Só para ricos: como privatização dos balneários fez o povo sumir das praias na Itália

Só para ricos: como privatização dos balneários fez o povo sumir das praias na Itália

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Com seu território projetado sobre as águas cálidas do Mar Mediterrâneo e um extenso litoral de quase 8.000 quilômetros, a Itália concentra algumas das mais belas praias da Europa. Das enseadas de areias brancas e águas cristalinas da Calábria às encostas rochosas da Ligúria, as praias italianas atraem turistas de todo o mundo e contribuem de forma significativa para as receitas do país. A cultura praieira é um fenômeno enraizado na identidade italiana e o êxodo massivo de famílias que se dirigem ao litoral para curtir as férias de verão — a “vacanza al mare” — é uma tradição bastante popular no país. Ou ao menos era, antes das praias serem privatizadas.

Na maior parte do mundo, as praias ainda são vistas como opções democráticas de lazer para as massas, por serem locais abertos ao público que permitem a prática de atividades recreativas a baixo custo. Essa característica, entretanto, é algo recente. Tradicionalmente, os balneários eram reservados ao usufruto das elites — e, no caso da Itália, isso tem raízes na Antiguidade. O país abriga as ruínas de alguns dos mais antigos “resorts” do mundo, incluindo a famosa cidade de Baia, um balneário de luxo nos arredores de Nápoles, frequentado por aristocratas, cônsules e imperadores, de Júlio César a Calígula. A tradição dos resorts de luxo ressurgiu na Itália no início do século 19, após um longo hiato iniciado na Idade Média. Na década de 1820, foi inaugurado o “Bagni Dori” de Viareggio, voltado a atender os turistas mais abastados. Nos anos seguintes, outros balneários aristocráticos foram abertos em Rimini e na Emília-Romanha. Os banhos de mar costumavam ser prescritos por médicos que acreditavam nos benefícios terapêuticos da água salgada.

No século 20, com a expansão dos meios de transporte de massa e a adoção da política de férias remuneradas, o acesso da classe trabalhadora aos balneários começou a se popularizar. Mas foi somente após a Segunda Guerra Mundial que o turismo de massa emergiu como fenômeno social na Europa. A partir de então, as praias foram democratizadas como destinos acessíveis para a classe trabalhadora. O turismo de massa criou fortunas para o setor privado. O influxo de trabalhadores para os balneários fomentou o boom econômico das comunidades litorâneas, motivando a criação de hotéis populares, restaurantes, comércios e estabelecimentos que ofereciam serviços a preços acessíveis.

Não demorou para que o setor privado começasse a enxergar no próprio acesso às praias uma oportunidade de negócios. O modelo de clubes de praia privados gerenciando trechos do litoral já existia, mas era um fenômeno restrito. A grande maioria das praias seguiam com livre acesso. Isso começou a mudar na década de 1960, quando o governo italiano passou a entregar a administração das praias a concessionárias privadas. Essa operação foi apresentada ao público como uma inovação moderna, em consonância com o espírito de renovação da “Dolce Vita” — a era de reconstrução de um país arrasado na Segunda Guerra. A promessa era de que as praias privadas garantiriam serviços de alto padrão, mais segurança e comodidade para os cidadãos. As tarifas seriam módicas e os banhistas que não pudessem pagar teriam assegurado o direito de frequentar a praias.

Nas décadas seguintes, esse modelo de gestão empresarial do litoral foi ampliado exponencialmente, transformando a Itália num dos países com maior percentual de praias privatizadas. Um estudo realizado pelo Sistema de Informação Marítima do Estado em 2021 revelou que a Itália possui hoje 12.166 praias geridas pela iniciativa privada — isso é, mais da metade das praias do país. Em algumas regiões, como Emília-Romanha, Campânia e Ligúria, cerca de 70% das praias já foram entregues à gestão privada. Nas praias badaladas do norte da Itália, a situação é ainda pior: em Riccione, o índice chega a 90%. Já em Gatteo, a taxa é de 100%.

A promessa feita pelo governo de que os serviços privados seriam rigidamente fiscalizados e regulamentados mostrou-se enganosa. Ocorreu o oposto, na verdade. Em 1992, o governo italiano aprovou uma lei que determinou a renovação automática dos contratos de concessão a cada seis anos e concede às empresas atuantes uma série de privilégios e a primazia nas indicações para retribuição do serviço. Na prática, as concessões se tornaram vitalícias e, caso os concessionários desejem, hereditárias. A entrada de novas empresas para gerir esses serviços tornou-se quase impossível.

A permissividade com os interesses privados tem custado muito caro aos banhistas. As tarifas são muito elevadas e constantemente reajustadas de forma abusiva. Para ingressar em uma praia privatizada, os italianos precisam pagar tarifas que vão de 20 a 150 euros — isso é, de R$ 114 a R$ 912. Em geral, as tarifas cobrem a entrada, o uso de duas cadeiras de praia e um guarda-sol. Para todo o resto, as operadoras podem cobrar taxas adicionais, incluindo o uso de chuveiros, vestiários e sanitários. As restrições aos visitantes são inúmeras. Em muitas praias, os banhistas não podem levar comida ou bebida, sendo forçados a pagar os preços abusivos cobrados pelos quiosques e bares autorizados pelas operadoras. Os frequentadores também não podem jogar futebol, vôlei ou tênis de praia.

Se quiserem praticar esportes, precisam pagar as taxas de aluguel das quadras e dos espaços reservados. Também há taxas extras para filmagens e para a realização de ensaios fotográficos. O visitante que for flagrado desrespeitando alguma dessas regras é multado, com valores que vão de 25 a 250 euros — de R$ 140 a R$ 1.400. A exploração de serviços não é a única fonte de receita das operadoras. Elas também disponibilizam as praias para que os clientes VIP possam realizar seus próprios eventos. Festas de casamento, shows, ações corporativas, etc. Basta pagar bem e a praia é a sua por um dia ou uma noite. O negócio é extremamente lucrativo: as praias privadas movimentem valores superiores a 15 bilhões de euros por ano. Já a arrecadação obtida pelo Estado nesse modelo de gestão é ínfima: meros 100 milhões de euros anuais.

 

*Pensar História

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