Em sua cruzada moral, bolsonarismo usa educação para controlar e punir

Em sua cruzada moral, bolsonarismo usa educação para controlar e punir

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Assim como em outros países onde a extrema-direita se fortaleceu nos últimos anos, estando ou não no poder central, no Brasil o bolsonarismo segue ativo, mesmo tendo perdido a presidência da República. Em sua cruzada anti-democrática e autoritária, a guerra cultural é elemento central e dentro dela, está a batalha pela educação, pela formação de “corações e mentes” em conformidade com a visão de mundo reacionária desse segmento.

Não faltam elementos a mostrar o empenho da extrema direita em conquistar de vez este flanco. Em seu arcabouço de investidas estão as “escolas sem partido”, as escolas cívico-militares, o combate à chamada “ideologia de gênero”, a censura a livros e atividades educacionais, o denuncismo contra professores que supostamente estariam “doutrinando” os alunos, o ensino em casa e até mesmo o novo ensino médio, visto muitas vezes como uma reforma voltada a modernizar conteúdos e métodos, mas que, no final, instrumentaliza a educação e reduz a margem para o estímulo ao pensamento crítico.

“Se olharmos para a história, não faltam exemplos de tomada da educação como área privilegiada para consolidar visões de mundo de diferentes grupos sociais. Não seria diferente com esse conjunto de atores que identificamos como a ‘extrema direita bolsonarista’. Uso aspas porque os grupos que se reuniram sob esse título já andavam por aí propondo projetos e medidas reacionárias na educação, como a participação da polícia militar na gestão de escolas públicas ou o ensino domiciliar”, explica, ao Portal Vermelho, a professora Márcia Pereira Cunha, pesquisadora associada do Laboratório Sophiapol (Université Paris-Nanterre) e do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.

Márcia aponta que “com as escolas cívico-militares, tratava-se de controlar e com a educação domiciliar, de proteger ‘os de bem’. Então, grupos conservadores encontraram no bolsonarismo uma plataforma a partir da qual amplificaram seus discursos e, na educação – nas escolas e universidades –, o espaço em que podem encenar, ao mesmo tempo, o que apresentam como a recuperação de um passado idealizado e a construção de um futuro próspero, ambos em oposição a um presente descrito como moralmente degradado”.

Mobilização contínua

Mesmo que afastados do controle do Ministério da Educação, esses grupos continuam atuando nos parlamentos, governos locais e na sociedade civil como um todo.

Entre os exemplos mais recentes estão a mobilização secreta que fizeram para influenciar a Conferência Nacional da Educação (Conae), no começo do ano, denunciada pelo The Intercept Brasil; a eleição do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) para a presidência da Comissão de Educação da Câmara e as tentativas de censura ao livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório.

A obra foi barrada em escolas do Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná, governados, respectivamente, por Eduardo Riedel (PSDB), Ronaldo Caiado (União Brasil) e Ratinho Júnior (PSD), todos alinhados, em maior ou menor grau, ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Além dessas, houve uma tentativa de barrar o livro por parte de uma diretora de escola do Rio Grande do Sul, estado onde o bolsonarismo também é forte. A publicação venceu o prêmio Jabuti de 2021 e faz parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do MEC — mas, para a diretora, o vocabulário usado seria de “baixo nível” e o livro não deveria figurar na lista.

As censuras ganharam repercussão nacional e trouxeram de volta à arena pública o debate sobre a gravidade da proibição de obras literárias por setores da extrema direita.

“Dois aspectos chamam atenção nesta história. Primeiro: o tema central do livro O avesso da pele é a denúncia da presença do racismo na sociedade e nas relações sociais, destacando que esse racismo ressoa nas organizações escolares e é estruturante na polícia. Pode-se até aventar que este possa ser o motivo real do incômodo causado pela obra, e não o uso de vocabulário de ‘baixo calão’”, diz, ao Vermelho, Sandra Reimão, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.

Outro aspecto salientado pela professora é que “as pessoas que agiram para que o livro fosse recolhido o fizeram explicitamente, com  estardalhaço, ‘colocando a voz no trombone’, em nome da ‘moral e dos bons costumes da família brasileira’”.

Para ela, esse “‘bater o tambor’” contra o que eles chamam de ‘dissolução de costumes’ é uma estratégia para estimular aqueles que pensam da mesma forma e mostrar que ‘eles estão atentos’ – o que é muito significativo em um país que vive um momento tão polarizado como o nosso”.

O intuito da direita, pondera a professora, “é promover um discurso de intolerância e ódio em uma franca cultura de vigilância e censura. A disseminação ruidosa de um discurso louvador  da intolerância recoberto pela aparente ‘proteção a nossas crianças e jovens’ ressoa na sociedade como um todo e põe em risco a cidadania cultural de todos”.

Essas últimas investidas acabaram amargando algumas derrotas. Após a repercussão negativa, Paraná e Goiás resolveram devolver o livro às escolas. Além disso, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) decidiu adotar o livro como leitura obrigatória em seu vestibular. Como reflexo do debate suscitado, a venda da obra cresceu 6.000% até meados de março, conforme a BookInfo, uma startup do setor livreiro. E pelas redes, era comum ver pessoas e grupos de estudantes tirando foto com o livro em apoio ao autor.

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