Doutora em Linguística, Eliara Santana analisa as narrativas da extrema-direita em entrevista ao GGN; confira.
Desde o final da semana passada os ataques do bilionário Elon Musk contra o judiciário brasileiro, sobretudo ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, acendeu o debate sobre as narrativas já conhecidas da extrema-direita.
Não à toa, a partir das afrontas, ameaças e das próprias atitudes de Musk, que passou a descumprir determinações da Suprema Corte em relação a sua rede social X (ex-Twitter), rostos carimbados do bolsonarismo viram a oportunidade “perfeita” para reforçar a retórica falaciosa, adotada desde de 2018, que coloca em xeque a legalidade do processo eleitoral e, consequentemente, a democracia brasileira. Agora, no entanto, com um outro elemento importante: a construção de um inimigo comum.
O GGN conversou com a doutora em Linguística e Língua Portuguesa, com foco em Análise do Discurso, Eliara Santana, sobre o tema. A pesquisadora associada do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp e integrante do projeto “Pergunte a um(a) cientista”, pontua ao menos quatro elementos simbólicos na remodelagem dessa narrativa. Entenda:
A narrativa comum entre Musk e Flávio Bolsonaro
Em meio ao fuzuê causado pelo segundo homem mais rico do mundo, segundo a Forbes, o filho zero 1 do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), defendeu e reforçou o discurso de Musk durante entrevista concedida ao programa Roda Vida, da TV Cultura, exibido na noite da última segunda-feira (8).
Enquanto Musk usou seu perfil no X para afirmar, sem qualquer prova, que Moraes “colocou o dedo na balança para eleger Lula” em 2022, Flávio, de forma quase que simultânea, afirmou em rede nacional que “o que o TSE fez antes, durante e depois das eleições, ficou muito claro para todo mundo que ele pesou muito mais a favor de um lado do que do outro“.
Para Eliara, a forma quase simultânea que as narrativas foram propagadas é “muito importante nessas elaborações, especialmente, nas elaborações que a extrema-direita tem feito a partir do ambiente digital”.
“O timing foi perfeito para colocar isso em circulação, para imediatamente responder em consonância com o contexto, em consonância com o que está ocorrendo, para propor uma resposta, propor uma interlocução, propor uma narrativa, que é disseminada e, então, consolidada”, explica.
“Essas colocações que estão circulando, não foram colocadas pelo Flávio, somente elas estão em circulação imediatamente após as falas do Elon Musk. Essas não são narrativas recentes. Ou seja, o tema eleições continua em voga. E aí as narrativas vão sendo remodeladas, a partir desse tema primeiro”, acrescenta a pesquisadora.
“Em 2018, o que havia era a questão das fraudes. Bolsonaro falou, inclusive, em entrevista ao Jornal Nacional, que se ele não fosse eleito em 2018 é porque havia de fato fraude nas urnas eletrônicas. Esse tema prossegue e chega a 2022, com pouco menos de força – mas ainda potente -, e aí ganha-se um novo novo tom, que é a questão dos benefícios, da suposta ajuda do TSE para o então candidato Lula. O presidente Lula, então, se soma à narrativa que já existia. E aí constrói-se uma narrativa de ataques às eleições, agora trazendo esse elemento da perseguição e de uma ajuda do TSE, especialmente do ministro Alexandre de Moraes”, pontua.
Eliara lembra que Moraes, que instaurou o inquérito das milícias digitais, é o responsável por ações fundamentais para o pleito em 2022 e que serão fundamentais neste ano eleitoral. “São fundamentais para a democracia brasileira, sobretudo após o 8 de Janeiro”. Sendo assim, surge um segundo elemento.
“Agora, essas narrativas se voltam para a construção de um inimigo comum. Quem é esse inimigo que está nos perseguindo e que está beneficiando outros grupos? Alexandre de Moraes, que precisa ser combatido e denunciado. Então, todas essas articulações mobilizam no sentido de fazer esse combate, de defender o que eles chamam de liberdade de expressão”, afirma.
A manipulação dos conceitos de censura e liberdade de expressão
Segundo Musk, o ministro Moraes – ao determinar a suspensão de perfis no X que propagam desinformação política e atacam as instituições – se caracteriza como um “ditador cruel”. O bilionário foi mais a fundo e afirmou que não cumpriria as medidas impostas. Moraes, então, adotou as medidas cabíveis, como a abertura de inquérito para investigar a conduta de Musk, uma vez que “as redes sociais não são terra sem lei”.
Flávio Bolsonaro, no Roda Viva, se colocou contra as decisões do ministro da Suprema Corte e afirmou que não há nada de errado com a conduta de Musk, um “simples cidadão americano, dono de uma empresa privada”. Para o senador, o que Moraes faz, enquanto ministro, é “censura” da “liberdade de expressão”.
“Uma outra narrativa que é colocada novamente em circulação é essa remodelagem – que eu chamaria de uma remodelagem bizarra – do conceito de liberdade de expressão. Eles já vinham se apropriando desse conceito, remodelando ele e colocando em cena uma visão absolutamente torpe do que seja a liberdade de expressão. Esse é o terceiro aspecto: colocar o tema da liberdade de expressão contra toda forma de censura, porque ele chama as ações do ministro Alexandre de Moraes de censura, quando não são”, diz Eliara.
“O Flávio Bolsonaro, na entrevista, diz que Musk não cometeu o crime, porque ele é um cidadão americano, dono de uma empresa. No que ele está absolutamente – e sabe disso – equivocado. Não é um simples cidadão americano, é o segundo bilionário do mundo. Não é uma simples empresa, é uma plataforma bilionária, que tem gigantesco poder econômico e por isso tem também poder político, porque pode influenciar eleitores no mundo inteiro – e a gente não está falando apenas do Brasil”, destaca.
Eliara lembra também que este ano metade da população mundial vai às urnas, segundo o think tank Council on Foreign Relations, e uma das primeiras medidas adotadas por Musk ao comprar o Twitter foi eliminar as equipes que cuidam da desinformação eleitoral.
“Veja, ele não defende liberdade de expressão nenhuma, e não é um cidadão qualquer, com uma empresa qualquer. É um bilionário dono de uma plataforma que não tem qualquer controle, porque as plataformas não têm nenhum tipo de regulação. E ele se acha no direito de interferir em questões judiciais e políticas de qualquer país. Portanto, as plataformas precisam ser reguladas“, afirma.
A pauta vem de cima
Durante a conversa com o GGN, Eliara pontuou um quarto elemento crucial na remodelagem dessa narrativa, que passa por um sistema político que influencia o debate público e que vai além das mídias sociais.
“É importante salientar essa articulação para colocar as narrativas em circulação, que estão em consonância absoluta com o contexto. Essa articulação não é aleatória, a fala de Flávio Bolsonaro não é aleatória. Existe uma articulação que coloca isso em circulação e essas narrativas encontram uma capilaridade muito grande porque não são apenas esses atores que colocam isso em circulação imediatamente, mas esse sistema de produção de desinformação, que continua em cena, produzindo, com uma organização que é muito bem estruturada”, explica.
“Há uma capilaridade enorme no ambiente digital, mas encontramos também essa capilaridade para disseminar esse conteúdo no ambiente de mídia tradicional, porque o Flávio estava na TV Cultura. Todo mundo vai dizer que pouca gente vê a TV Cultura, mas há uma edição de todo esse material e isso começa a circular pelas redes, e é disso que se trata, porque os grupos tradicionais de mídia têm credibilidade. Outro detalhe: no jornalismo, nós sabemos que muitas pautas vêm de cima, totalmente de cima, e não se discute. A TV Cultura é do governo de São Paulo, atualmente encabeçado por Tarcísio de Freitas, um bolsonarista, super palatável”, completa a pesquisadora.
*GGN