A Opera Mundi, Bruno Beaklini disse que, ‘sem a presença militar dos EUA’, será ‘indefensável’ para Tel Aviv manter os territórios ocupados na atualidade.
Israel tem a noção de que os territórios ocupados são indefensáveis na atualidade dada a capacidade militar do Hezbollah. Essa é a avaliação do doutor em ciência política e professor de relações internacionais Bruno Lima Rocha Beaklini. Para ele, o cenário geopolítico da atualidade mudou a “configuração das guerras anteriores” e que, “sem a presença militar dos Estados Unidos”, manter a soberania em tais territórios seria de extrema dificuldade para o governo de Benjamin Netanyahu.
A Opera Mundi, Beaklini disse que Tel Aviv teme a possível entrada do Hezbollah por conta desses territórios, apontando também que o Exército israelense “não se sente nem um pouco confortável em lutar em duas ou três frentes simultâneas”.
“Mudou muito a configuração das guerras anteriores, como de 1967-1973 para cá, muito mesmo. Embora nenhum dos atores tenha a supremacia aérea e sequer se tenha arma aérea, a capacidade do eixo da resistência de operar artilharia de longa distância é muito grande”, disse.
O especialista de origem paterna árabe-libanesa recordou que Israel já foi duas vezes superado pelo grupo libanês: “em 2000, quando por 15 longos anos expulsou o invasor sionista do Líbano, e depois em 2006, quando o Exército sionista invade o Líbano e sai derrotado”.
Questionado se uma possível entrada do Hezbollah no conflito pode estender a guerra, Beaklini foi taxativo ao afirmar que o primeiro passo dessa escalada foi dos Estados Unidos, que garantiu ajuda militar a Israel.
“O primeiro passo foi dado pelos Estados Unidos, para evitar a escalada de modo que Israel não consiga se defender. Isso hoje seria uma situação de favas contadas, porque quando e se o conflito ampliar de tamanho, os Estados Unidos certamente vão atacar todos os atores estatais e não estatais, ou eles estão blefando. Mas o Hezbollah com certeza vai ser atacado pelos Estados Unidos de forma direta”, disse.
Confira a entrevista de Opera Mundi com Bruno Lima Rocha Beaklini na íntegra:
Opera Mundi: Bruno, quais os motivos que resultam nessa expectativa de que, se o Hezbollah entrar no conflito, essa guerra muda de configuração?
Bruno Lima Rocha Beaklini: a ideia de que o Hezbollah entre no conflito, e a operação dilúvio de Al-Aqsa ou Al-Aqsa inundada mude de configuração, é primeiro por que o Hezbollah já ganhou duas vezes Israel, ganhou em 2000, quando por 15 longos anos expulsou o invasor sionista do Líbano, e depois em 2006, quando o Exército sionista invade o Líbano e sai derrotado. 2006 é a virada, aquilo que os gringos chamam de ‘turning point’, ou ‘game change’, no Oriente Médio.
O que vem acontecendo em relação específica ao Hezbollah a partir de então? A sua capacidade militar vem crescendo e aumentando, e o modelo de guerra para libertar a Palestina, em todo Bilad al-Sham, ou seja, a Palestina histórica, a Síria e o Líbano, e uma parte do que hoje é o reino da Jordânia, a artilharia de longa distância, terra – terra, vem em parte compensando a supremacia aérea de Israel ou dos Estados Unidos como apoiador de Israel. Por isso que a configuração, no estrito senso, em termos militares, ela pode ser modificada com a entrada do Hezbollah. E não só o Hezbollah, o conjunto de forças político-militares de refugiados palestinos que estão no Líbano e também na Síria.
Por outro lado, o ingresso do Hezbollah, com todo o seu empenho na operação Al-Aqsa inundada ou Al-Aqsa sob dilúvio, pode comprometer a defesa da Síria, que ainda tem uma escalada importante de conflito, e comprometer, em parte, a defesa do próprio Líbano, caso entre num conflito sectário novamente, o que é o mais improvável.
A possível entrada do Hezbollah nesse atual conflito pode estender essa contraofensiva de Israel?
Antecipando a possível, e creio eu hoje, provável entrada do Hezbollah para além de escaramuças de fronteira territórios ainda em disputa, porque há território libanês invadido pelo Estado sionista, a gente observa a presença da frota dos Estados Unidos, a garantia de presença de suprimentos militares, já foi possível acompanhar dois voos militares com carga máxima, além de tudo o que vem junto em termos de logística e suprimentos no porta-aviões e nos cinco navios de guerra de escolta, entre cruzados e fragatas. Foi uma antecipação, porque a escalada seria esta: Israel provoca a Palestina, Palestina responde com a operação, abrem-se duas frentes e aí Israel chama ajuda dos Estados Unidos.
Para evitar essa escalada, já se deu a presença do Comando Central [dos EUA], que por sinal é o comando histórico do atual secretário de Defesa dos Estados Unidos, então a extensão do conflito, embora o Hezbollah deva entrar de alguma forma ou aumentar a resistência na própria divisa territorial para reconquistar os territórios em disputa, pelo menos isso a gente vai observar que o primeiro passo foi dado pelos Estados Unidos, para evitar a escalada de modo que Israel não consiga se defender. Isso hoje seria uma situação de favas contadas, porque quando e se o conflito ampliar de tamanho, os Estados Unidos certamente vão atacar todos os atores estatais e não estatais, ou eles estão blefando, mas o Hezbollah com certeza vai ser atacado pelos Estados Unidos de forma direta.
Na sua opinião, Israel teme a possibilidade da entrada do Hezbollah no conflito?
Sim, Israel tem a noção de que, sem a presença militar dos Estados Unidos, os territórios ocupados em 1948, vulgo Israel, são indefensáveis na atualidade dada a capacidade militar do Hezbollah. Não só, mas também. Então, nesse sentido, sim, Israel teme a possibilidade de entrada do Hezbollah no conflito e não se sente nem um pouco confortável em lutar em duas ou três frentes simultâneas.
Mudou muito a configuração das guerras anteriores para cá, muito mesmo. Embora nenhum dos atores tenha a supremacia aérea e sequer se tenha arma aérea, a capacidade do eixo da resistência de operar artilharia de longa distância é muito grande.
Qual é a relação do Hezbollah com o Hamas e o conflito de Israel com a Palestina no geral?
A aliança entre Hezbollah e Hamas é um ‘milagre’, eu diria. Porque é a superação de uma disputa sectária intra-islâmica, entre Shia e Sunni, e também, dentro do Islã, do Islã político, que é um xiismo do duodécimo, que é a vertente oficial, a majoritária do xiismo e a interpretação mais próxima do sunismo da trajetória iniciada com a Irmandade Muçulmana. Onde eu quero chegar? Diante da defesa da nação árabe, da defesa da Palestina, foi possível construir uma aliança entre organizações políticas e militares que, se fosse depender só de sua trajetória e o sistema de crenças, seriam inimigas sectárias, pelo menos adversárias.
Entrada do grupo libanês pode escalar conflito no Oriente Médio
A causa palestina tem esse dom, ela é a única que unifica o mundo árabe e o mundo islâmico, especificamente o mundo árabe. Então a partir da Revolução de 1979 no Irã, a vitória na guerra de provocação do Irã-Iraque, a chamada Sagrada Resistência, e a construção do eixo da resistência, Irã, Síria, Hezbollah, a resistência palestina, a luta no Iêmen, a maioria da população iraquiana no presente momento, embora seja de maioria xiita ou o chamado eixo da resistência, a presença do Hamas e a relação com as forças palestinas abrem o leque, abrem esse campo de aliança e possibilita algo que desde que se perdeu a liderança de Nasser no Egito não tinha.
Embora não seja árabe, é uma ironia, ok? Uma ironia saudável. O Irã é o maior ‘Estado árabe’ do momento, porque é o país que apoia a resistência contra a ocupação sionista e as agressões contra os territórios no entorno da Palestina ocupada.
O Hezbollah é uma organização política e paramilitar islâmica xiita do Líbano. Como ela surge e como você avalia o papel dessa organização no atual cenário libanês e também do Oriente Médio?
O Hezbollah é um partido político libanês como todos os outros, a diferença é que a sua espinha dorsal é marcada por população xiita camponesa que residia no sul do Líbano e que necessariamente se via obrigada a se defender. Uma população muito pobre, a população excluída da maior parte dos acordos intra-libaneses e exposta a conflitos sectários na interna do país.
O Hezbollah vai ter um enorme crescimento a partir de 1982, e na sequência ele supera o outro partido shia, a Amal, e ele vai ter muita influência da disputa de liderança intra-xiita que se dá durante a guerra civil libanesa. O Hezbollah tem um grande mérito que é nunca ter operado dentro do Líbano. Ele opera sempre para defender o território libanês, a integralidade do território libanês, e aceita o sistema político, que é a tradição sectária libanesa, que é o chamado confessionalismo político. Ele aceita esse jogo político, mas se mantém atento à defesa territorial do país e à sua aliança estratégica com a República Árabe da Síria, o Irã e a resistência palestina.
A gente pode afirmar que o Hezbollah tem duas origens: a luta dos camponeses shia do sul do Líbano para se defender da invasão de Israel em 1978 e 1982, que se torna invasão permanente, e uma relação muito próxima com o Teerã a partir da revolução iraniana em 79, e em específico a partir da revolução iraniana. Formação do eixo da resistência com mais empenho, eu diria, depois do final da guerra Irã-Iraque em 1988.
Naim Qassem, segunda maior autoridade do Hezbollah disse na sexta (13/10) que o grupo está “pronto” para contribuir na luta dos palestinos, mas ressaltou que “dentro da nossa visão e dos nossos planos”. Qual é essa visão?
A afirmação do Naim Qassem é muito interessante. Por quê? Porque é fato, o Hezbollah tem como missão principal defender a integridade territorial libanesa, depois a sua aliança estratégica com a República Árabe da Síria, e, na sequência, a relação irmanada, diria, com a resistência palestina. Mas se o Hezbollah arriscar toda a sua capacidade militar no conflito contra Israel, deixa o Líbano desguarnecido. Esse é um ponto.
O outro, tal como Hamas, embora exista uma aliança, tem autonomia estratégica. O Hezbollah é um partido político que compõe o governo libanês e, ao mesmo tempo, tem as suas forças de defesa e coordena resistência libanesa contra a invasão de Israel. Então, os tempos de entrada e o tipo de operação que pode ser feita é decisão do Hezbollah, e não de um outro centro de comando e controle, seja ele, Hamala, ou Gaza, ou qualquer outro centro decisório.
É uma afirmação importante que o Hezbollah está pronto para defender a Palestina, mas na medida do possível, com o empenho de sua força militar segundo a sua própria escala e própria capacidade, eu diria, de modo a garantir o seu território, ou seja, avançar e não retroceder, não ceder território para o inimigo sionista dentro do Líbano. Essa é a primeira função do Hezbollah, isso ele é muito vitorioso, e depois ser solidário.
Como você avalia o cenário que esse novo episódio desse conflito histórico de Israel contra os palestinos desencadeou na região?
Eu diria que o cenário é imprevisível e com dimensões incomensuráveis, porque a capacidade de ação da máquina de guerra israelense, junto com o apoio incondicional dos Estados Unidos, é um paradoxo. Tem uma enorme condição de exercer o dano, destruição em massa e, ao mesmo tempo, no macro cenário, no sistema internacional, os Estados Unidos e seus aliados se veem numa situação bastante, eu diria, incômoda.
Não é mais a situação do início do século 21, 20 anos atrás, quando ocorreu a segunda invasão do Iraque. Há flancos abertos por todos os lados na economia política internacional que dão a entender o enfraquecimento do poder dos Estados Unidos, mas do poderio bélico ele é muito grande ainda. Eu queria afirmar, de maneira bastante cautelosa, que a imprevisibilidade da limpeza étnica, a segunda Nakba contra Gaza traz um cenário imprevisível.
E o máximo que a gente pode antevir é uma extensão do conflito indireto entre Estados Unidos e Irã. É como se fosse uma divisão de escala de grandeza. Israel combate a resistência libanesa, a resistência palestina e a República Árabe da Síria. A superpotência combate a potência regional.
Nada nos diz que o Irã vai engajar numa guerra convencional, mas tudo nos leva a crer que vai haver muita provocação para que isso aconteça, considerando o que é previsível entre os agentes do conflito. Então, nós realmente estamos diante de um cenário onde o imponderável prepondera. Desculpa a redundância.
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