Involução democrática e civilizacional: um Brasil retrógrado trabalha para legalizar o processo de genocídio, ora descarado, ora sutil. Um desastre anunciado. A nação “cordial e simpática” expõe sua face sórdida perante a comunidade internacional na contramão de tudo. Obviamente isso não vai ficar assim. Os povos indígenas e o povo brasileiro não vão aceitar esse retrocesso acintoso. Tempos tensos no horizonte, restando torcer para que as instituições que se pretendem democráticas possam prevenir ou, pelo menos minimizar, um previsível derramamento de sangue e o vexame danoso à imagem de um país.
Veta integral, Lula!
Desde o alívio daquela noite de 30/10/2022 em que Lula foi declarado vencedor, muitos de nós que acompanhamos a luta tenaz dos povos indígenas no Brasil e participamos da luta democrática plural temos realinhado nossas reflexões sobre horizontes e futuros. Muito alívio, esperanças renovadas, mas sem ilusões ou ausência de receios. Dias atrás, outro alívio relativo: em 22/09/2023 o Supremo Tribunal Federal diz não à tese imoral e colonialista do marco temporal. De novo, zero ilusões. Perdedores, os racistas cínicos e empoderados prometeram vingança e cumpriram, hoje, 27/09. Os próprios magistrados que derrubaram o famigerado marco sugerem novidades “conciliatórias” com potencial pleno de oficializar impasses, tensões e postergações de soluções efetivas e pacificadoras. A insegurança jurídica que os ruralistas diziam querer evitar está sendo, na verdade, promulgada. O empoderamento da violência racista e genocida é mais que evidente.
Nossa urgente necessidade de mudar e erguer uma democracia sólida
A nova situação de condução indígena das políticas públicas indigenistas trouxe alentos importantes, marcantes, mas também nenhuma dúvida quanto à perspectiva de radicalização dos confrontos da Resistência contra o entulho colonial-escravocrata neoliberal. Sejamos claros: temos um Estado de natureza ainda estruturalmente colonialista, retrógrada e excludente. Dominado por classes ricas elitistas, entreguistas, racistas e autoritárias no final das contas.
Legislativo e Judiciário brancos decidem unilateralmente sobre a vida de indígenas e negros. Vidas geralmente afetadas direta ou indiretamente por elites brancas opressivas. Dá para chamar de Democracia?
Lembremos que no Brasil o sistema de representação política, e por tabela o eleitoral – na esteira da receita ocidental burguesa de democracia – se baseia em regras que propiciam resultados eleitorais completamente estranhos, contraditórios. O eleitorado sinaliza sua preferência por um caminho de liberdades democráticas, soberania, desenvolvimento econômico e justiça social, sensibilidade ambiental, direitos humanos, etc, na eleição principal, a que define o Chefe de Estado. O mesmo eleitor, porém, na mesma eleição, escolhe um legislativo de maioria conservadora, corrupta, de ideias retrógradas e elitistas. Um sistema bem ao feitio das classes exploradoras e opressoras. Não é acidental, é intencional. Arapucas que as lideranças do campo democrático, se não falham em perceber, vem mostrando dificuldades, ou falhando mesmo, na tentativa de desarmar. Durma-se com um barulho desses – mas a culpa, de todo modo, não é propriamente do eleitorado. Este, inclusive, voltou a colocar uma mínima representação indígena no Congresso em 2018, e em 2022 ampliou o feito.
Vamos lembrar também que um 3° Poder, o Judiciário, embora venha mostrando evolução ideológica democrática e de coerência com os alvissareiros avanços “civilizacionais” inseridos na atual Constituição Brasileira (1988), guarda ainda ocorrência lamentável de práticas antidemocráticas, vulnerabilidades a ideias autoritárias, conservadoras, reacionárias e corruptas. Um judiciário excessivamente ancorado numa cultura jurídica euro centrada, passível, como vimos, a cometer lawfare, sendo permeável ao acesso de magistrados de mentalidade oligárquica elitista, ou mesmo desonestos, despreparados ou desqualificados; procuradores idem. Assim como no Legislativo, um poder onde trabalhadores, mulheres, negros e indígenas são sub ou não-representados. Desse modo realmente não transmite total confiança quanto à construção democrática.
Em suma, democracia e estado de direito, professados há tantas décadas, são ainda pouco mais que temas de uma guerra prolongada que vem sendo travada neste país que é um dos mais desiguais e violentos do mundo. Podemos compreender melhor esse quadro quando constatamos que a luta de classes no Brasil tem óbvios componentes relacionados às heranças coloniais-escravistas. Ou seja, exploradores e opressores, inseridos, são essencialmente brancos, euro-centrados; explorados e oprimidos, excluídos, são majoritariamente não-brancos – mestiços, negros e indígenas, de raízes não ocidentais.
Apesar das tantas derrotas, falhas, erros e tropeços ao longo do tempo, a luta democrática do povo brasileiro teve também avanços e vitórias, dando sinais de um amadurecimento consistente e, assim, mostras de grande potencial de crescimento. Trata-se, mais que nunca, de um processo mundial, naturalmente. Diria que os movimentos específicos dos povos indígenas, do povo negro (e demais vítimas do racismo e do colonialismo) e do ambientalismo contribuíram de modo muito especial para esse abençoado novo patamar de consciência, lucidez, mobilização e organização da luta democrática e socialista em todo o mundo. Tudo isso, claro, produto do acirramento intenso das contradições sociais e ambientais no planeta.
Classes e ideologias dominantes e o sistema de poder internacional que os apoia, alinhados com o que chamam de “mundo livre”, pretensamente “democrático”, se opõem, em última análise, à construção de uma democracia verdadeira, efetiva, de caráter plural. O sonho (sob o capitalismo imperial voraz) acabou. Se aferram à ideia de monopólios e privilégios patrimoniais fundiários e imobiliários, assim como de postos de poder. Tentam manter a todo custo controle sobre as instituições do Estado, sobretudo seus braços armados e as estruturas de comunicações de massa, além do arcabouço legal, no que contam com decidido e enxerido apoio do grande capital imperialista e de Estados-potência estrangeiros, mormente os Estados Unidos da América. Se depender desses, não há chances de os brasileiros galgarem plena soberania nacional, justiça social, democracia, eliminação da pobreza, da fome e da violência. E assim teremos dificuldades no acesso democratizado à terra, à moradia digna, saneamento, saúde, educação, comunicação democratizada, a direitos efetivamente iguais de gênero, raça, etnia, etc. Portanto, como dito acima, só haverá democracia verdadeira no Brasil via conquista política árdua do povo brasileiro diverso e plural, jamais como concessão das elites ainda donas do poder (Estado). É assim que funciona, em linhas gerais, em todos os países subalternos do Sul Global e mesmo em muitos da periferia do Norte Imperial.
Enfrentando a contraofensiva retrógrada
O que ocorre de uns anos para cá, ante a auto ruína da democracia burguesa e um declínio palpável das ilusões neoliberais do capitalismo imperial, é uma contrarrevolução reacionária, o renascimento articulado do fascismo, a nível mundial, operando com técnicas sofisticadas. Esse movimento chegou ao Brasil com certa força, operando de bases externas e internas, com relativo sucesso entre setores sociais reacionários e alienados, segmentos menos politizados das grandes massas, sobretudo aqueles mais vulneráveis a políticas de ódio e consumação de mentiras massivas, negacionismos, etc. Empreenderam um esquema de lawfare, e o resto a gente já sabe. Diante do relativo sucesso político, não tiveram constrangimento em assumir mais claramente suas pautas de retrocesso social, jurídico, econômico e político, em alinhamento declarado à desgastada onda neoliberal. Deixaram, com isso, explícita e clara a intenção de destruir a democracia e retroceder a uma ordem colonialista autoritária. Uma perigosa contradição exposta, já que a direita e o capital internacional tem usado há várias décadas a bandeira da democracia (burguesa) para, com visível controle auxiliar de um sistema monopolizado de mídia de massas, acuar, deixar na defensiva, o discurso libertário da esquerda. Para agravar a ira e o desespero neofascista das classes dominantes, desenha-se no plano internacional uma palpável decadência da ordem imperial unipolar, e, em contrapeso, um crescimento patente de uma perspectiva de nova ordem multilateral.
É nesse contexto subsequente à onda neoliberal que surgem no Brasil vários projetos de lei (PLs) anti-indígenas no Congresso desde pelo menos a penúltima década. As bancadas conservadoras sabem que tem força no Congresso desde sempre. O sistema político é arquitetado justamente para isso. No entanto, essa direita não se considerou forte nem ousada o suficiente para alterar a Constituição no que esta apoia os povos indígenas; mas tem mantido “na gaveta”, desde 1991, o Estatuto dos Povos Indígenas. Ou seja, o Brasil continua sem uma lei indigenista central coerente com sua Lei Maior. Agora, diante do fiasco no Supremo, líderes “ruralistas” já falam até em alterar a Constituição!
Por seu lado, o Judiciário Brasileiro, ainda que a corte suprema venha mantendo fidelidade à Carta Magna, aliás fazendo jus a sua obrigação legal, achou de inventar moda, tentando atuar no vácuo legislativo. Foi assim que ventilaram o tal “marco temporal”, de modo gratuito, naquele episódio esdrúxulo, em 2009, das “condicionantes” no julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Esses dias, ao derrubar o marco temporal, certos magistrados resolveram, açodadamente, sugerir normas e leis que, na prática, buscam atender ao mimimi extrapolado dos que se sentem “prejudicados” em processos de demarcação e gestão dos territórios indígenas. O “prejuízo” desses num país racista-colonialista vale mais que o pesado prejuízo de décadas ou séculos de povos esbulhados e agredidos. Ou seja, a articulação anti-indígena, associada de modo absolutamente mentiroso e inconsistente à defesa da “produção agropecuária”, deseja, em última análise, manter e, se possível, perpetuar tensão e conflito, preconceito, acirramentos, de modo a impedir ou atrasar demarcações – o que já vem acontecendo sistematicamente – sabendo que em tais contextos os mais prejudicados são os povos indígenas. Uma estratégia genocida com sutilezas. Questões que poderiam estar regulamentadas e consolidadas no engavetado Estatuto dos Povos Indígenas, coerentes com a Constituição e com a tendência jurídica internacional. Fatiam e colocam em pauta temas de alta sensibilidade, com potencial de ameaçar a existência dos povos indígenas tanto quanto ou mais que o “marco temporal”. Não se vê tréguas na resistência secular!
Superando vacilos e acomodações
Todo esse cenário conflituoso, de insinuantes ameaças e ensaios de retrocesso, nessas 4 décadas teve como contracena certa timidez e vacilo dos governos FHC, Lula 1 e 2 e Dilma 1 e 2. A direita rural dramatiza e ideologiza situações localizadas, num blefe explícito charlatão, e alguns democratas brasileiros engolem sem contestação, negociando neutralização de direitos em troca de governabilidade. Entre 2016 e 2022, claro, o Executivo migrou para uma postura ainda pior: um franco apoio aos setores políticos anti-indígenas. Lula 3 dá sinais visíveis de autocrítica e tenta avançar em atitudes proativas através de um inédito protagonismo indígena central na política indigenista. Entretanto, por um lado, a estrutura governamental está sucateada e sua recuperação pede tempo; por outro, o arcabouço ideológico, cultural e de compreensão político-estratégica relativos à questão indígena no Estado Brasileiro segue dando mostras de decepcionante e persistente atraso. As considerações do Ministro Alexandre de Morais em seu voto no julgamento sobre o marco temporal e a derrota indígena na Câmara dos Deputados (PL 490, também marco temporal) e agora no Senado, entre outros fatos, expõem essa realidade. Vale observar que o marco temporal e a Constituição do Brasil não se encaixam. O STF terá que anular, por inconstitucionalidade, a nova lei da Direita.
Por incrível que pareça, sobrevive na mentalidade de muitos políticos e dirigentes econômicos e sociais a ideia absurda, fictícia e retrógrada, de que os direitos dos povos indígenas e “tradicionais”, sobretudo os territoriais, representam “obstáculo ao desenvolvimento”. Uma tese que não se sustenta sob nenhum prisma que considere como premissa do “desenvolvimento” seu benefício social, humano e a sustentabilidade ambiental. Sob o olhar da voracidade inescrupulosa e arbitrária do capital poderia até ser. Só que o planeta não aguenta mais esse tipo de (pseudo) “desenvolvimento”, como tem evidenciado com crescente alarme os relatórios do IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climática, das Nações Unidas. Sobretudo, os povos indígenas, assim como qualquer outra comunidade humana, constituem parte ativa e respeitável do grandioso e complexo conjunto de cidadanias democráticas do planeta.
Avançando na luta democrática
Precisamos elevar e ampliar bastante o embate na guerra cultural e ideológica pela democracia e os direitos humanos em todos os sentidos, especialmente no que tange aos povos indígenas e também aos quilombolas e outros povos. Os movimentos políticos e populares pela democracia, através de suas organizações e partidos, devem se associar nesse esforço articulado concentrado de combate, em amplas frentes, às pretensões colonialistas opressoras de setores econômicos, sociais, político-ideológicos de restringir direitos e ameaçar a existência física e cultural dos povos indígenas.
Não a quaisquer retrocessos na construção democrática e nos direitos dos povos indígenas!
Não à indenização pela terra como recurso no processo de demarcação de terras indígenas! Eventuais erros passados do Estado não podem se sobrepor aos direitos originários. Prejuízos de invasores de terra indígena não podem valer mais que o prejuízo que inúmeras gerações de famílias indígenas.
Não à mineração predatória em terras indígenas – e que esta norma se torne um imperativo pactuado a nível internacional!
Não a projetos energéticos e hidráulicos que tragam impacto negativo sobre territórios e existência dos povos indígenas!
* Vermelho