Os recentes e cada vez mais violentos protestos na França que tomaram o noticiário internacional são apenas mais um capítulo de uma série histórica longuíssima, de profundidade e abrangência das quais só seremos capazes de compreender na totalidade com o tempo. A Guerra da Ucrânia acelerou de forma alucinante a descendente do “Velho Mundo” e este não é um episódio conjuntural qualquer, estamos diante de um abalo estrutural, uma crise catastrófica no melhor sentido “luxemburguiano” possível, para fazermos aqui uma referência às análises de Economia Política da pensadora alemã do início do século XX, Rosa Luxemburgo.
Como todo fenômeno de larga escala, a problemática envolvida nos abalos políticos, econômicos, sociais e até mesmo civilizacionais da Europa não estão circunscritos a fatos pontuais dos últimos dois ou três anos. O que se vê nos tempos atuais representam eventos residuais do prolongamento da “Crise histórica do Capital” iniciada com os choques do Petróleo na década de 1970. Embora esta interpretação seja comum em diversos círculos analíticos, há ainda muito ruído e desordem na cobertura da imprensa sobre o tamanho e a gravidade da crise, por um lado por pura e completa falta de conhecimento e por outro lado por um projeto deliberado de desinformação e despolitização da massa trabalhadora global que está cada vez mais entorpecida, desinformada e confusa – o que é um verdadeiro contrassenso: em plena era das redes sociais nunca vimos tanta barbaridade sendo dita e feita. Esta informação por si só já é um diagnóstico de um desequilíbrio inédito no sistema-Mundo vivido. Mas os eventos de natureza geopolítica costumam ser extremamente didáticos para compreendermos a conjuntura política atual.
Isto posto, é necessário compreender em que medida o aprofundamento da crise na Europa pode estar criando novos movimentos no tabuleiro de xadrez do Império anglo-americano sobre as nações do Atlanticismo. Os atuais protestos na França precipitados pelo assassinato brutal do estudante de origem árabe Nahel, morto pela polícia parisiense, deu início a uma verdadeira insurreição nas ruas das principais cidades do país: uma onda de protestos com violência e virulência poucas vezes vista e que reacenderam a crise do governo Macron. Este enfrenta uma enorme contestação popular desde a aprovação da mais recente Reforma da Previdência, que foi realizada sem passar pelo Parlamento, uma decisão de natureza ditatorial e autocrática. Esta medida chocante levou a uma escalada sem precedentes de descontentamento contra o presidente, em especial por se tratar da França, país que desde a Revolução francesa raramente costuma tolerar decisões autocráticas. Mas afinal, por que?
Considerado “office boy” exemplar do sistema financeiro da Europa, Macron está desde o seu primeiro mandato garantido e protegido pelos banqueiros em seu cargo e com amplo e irrestrito apoio dos oligopólios da imprensa europeia, ainda que sua popularidade já estivesse no limite do aceitável antes mesmo de sua reeleição. Emmanuel Macron precipitou uma nova cleptocracia na França em nome de uma “responsabilidade fiscal” cínica, mentirosa e que arruína o estado de bem estar social francês de forma inédita. A cleptocracia também está em nome de um reforço pungente da subordinação da França à OTAN, OCDE e ao Consenso de Washington. O descalabro na forma como Macron decretou a Reforma da Previdência vai muito além de uma manobra de austeridade e obediência às doutrinas do poder parasitário dos bancos. A maior parte dos franceses parece saber que a medida visa garantir mais empréstimos bancários para arcar com a indústria da guerra contra a Rússia às custas do povo francês numa Guerra que todos sabem que não terá futuro enquanto o Ocidente não ceder. Dar murro em ponta de faca não só cria uma insatisfação cada vez mais militante por parte dos franceses como a Extrema Direita francesa, considerada outsider e “anti-globalista” já dá as caras e parece conseguir angariar apoio da massa trabalhadora francesa muito mais do que a própria esquerda local. Já são muitos os problemas que se acumulam nas ruas das principais cidades francesas – com ênfase na própria capital, a turística e mundialmente famosa Paris que vive há anos com o aumento da indigência, violência e o choque de culturas já que a França é o destino de milhões de imigrantes oriundos dos países outrora controlados pelos franceses no auge do Neocolonialismo em África e Ásia. Mais recentemente uma nova leva de imigrantes oriundos da Síria, Líbano, Afeganistão, Haiti, Líbia e Ucrânia ampliaram o caldeirão de culturas que levam os conservadores ao desvario completo.
O fato da Extrema Direita estar capitalizando apoio político de grande parte da massa trabalhadora francesa é um caso preocupante e ao mesmo tempo sintomático da falência provocada pelas visões atabalhoadas as quais a esquerda europeia enfrenta desde Maio de 1968. Os eventos marcantes de finais de 1960 produziram uma esquerda europeia débil, confusa e que foi, cada vez mais, cooptada pelo sistema ao ponto desta não conseguir estimular um mínimo de consciência de classe entre os trabalhadores. Essa lacuna, provocada por caprichos da intelectualidade francesa da segunda metade do século XX responde hoje pela desorganização e desmobilização impressionante das representações ditas de “esquerda” que se veem hoje cada vez mais defensoras do Estado democrático de Direito sem considerar que o Estado democrático de Direito é a falácia do Macronismo, é o engodo da Burguesia que enfrenta a maior crise de sua História. Esta esquerda tende a desaparecer junto com o estado burguês e seus mitos de democracia. Uma parte significativa dos trabalhadores franceses não se veem mais representados pelos sindicatos e partidos progressistas. Muitos destes trabalhadores precarizados estão a reboque da Extrema Direita que se apresenta na Europa atual como anti-sistema (embora efetivamente não seja, a Extrema Direita usa o discurso anti-sistema apenas para angariar apoio).
Em que pese o fato de Macron ter se mostrado o mais aplicado e obediente servo do Capital financeiro entre os representantes da classe política europeia e um “soldado” dedicado da OTAN, recentes manifestações de que Macron estaria sentindo a pressão da brutal crise que se acumula em seus domínios foram observadas com inquietação por Washington. Macron chegou a considerar, no primeiro semestre de 2023, diálogos com a China e até mesmo com a Rússia no sentido de garantir um acordo ou rendição negociada da Europa Ocidental. Houve até demonstrações públicas de simpatia à ampliação de moedas que não sejam o dólar nas transações internacionais, o que levou Marco Rubio, o líder dos republicanos no Senado dos EUA a defender, em tom de ameaça, a interrupção da cooperação dos EUA com a França caso Macron estivesse de fato declarando guerra ao dólar e representando uma opinião majoritária dentro da Europa Ocidental. Este seria o pior pesadelo para os EUA que mantém a União Europeia aos seus pés em meio a escalada de tensões no Mundo entre novas superpotências econômicas e militares que contestam o poder imperial dos atlanticistas.
Teria Macron falado sério ou não? O assunto esfriou mas acredita-se que as noites estejam cada vez mais tenebrosas em Washington. Será que o Pentágono e o Complexo Militar Industrial norte-americano irá pagar para ver a rendição de sua maior aliança para o crescente poder sino-russo e sua histórica aliança Euroasiática? Não sabemos as respostas para estas perguntas mas sabemos que fatos estranhos acontecem no interior das engrenagens do poder global. Alguns chegam a se perguntar se Macron não está agora, no famigerado “Caso Nahel”, enfrentando uma Guerra Híbrida. A Guerra Híbrida ou “Revolução Colorida” é a doutrina dominante do Pentágono para remover governos indigestos e indisciplinados, é um modelo sofisticado de Golpe de Estado para fins de câmbio de regime do qual nós brasileiros, inclusive, conhecemos bem pois temos visto este “filme” em nosso país desde Junho de 2013, assim como quase toda a nossa vizinhança continental.
Macron vítima de uma Guerra Híbrida até pouquíssimo tempo atrás pareceria muito longe do radar de qualquer analista e tal afirmação seria considerada uma alucinação total e completa. Entretanto, o grau de crise está em patamares cada vez mais chamativos e fatos insólitos como esses não podem ser vistos como uma surpresa. Macron e sua obediência aos banqueiros e a Washington durarão por toda a eternidade? Óbvio que não, em especial porque a Rússia aposta no prolongamento da Guerra da Ucrânia justamente para acelerar a implosão da Europa Ocidental. Estaria Washington buscando alternativas mais agressivas na França para impedir a rendição da Europa diante de Rússia e China? As respostas para estas dúvidas só virão com o tempo. O que temos certeza, entretanto, é que estamos testemunhando o dissolução da Ordem do Capital como o conhecemos no Pós-2ª Guerra Mundial.