Quem lucra com as Fake News?

Quem lucra com as Fake News?

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Desde os primeiros mitos que nossos antepassados narravam ao redor de fogueiras até os filmes, séries e livros que moldam nossas perspectivas hoje, as histórias oferecem mais do que uma fuga: elas nos conectam, ensinam e nos ajudam a encontrar significado na complexidade da vida. Kenneth Burke, crítico de cinema, descreveu histórias como “equipamentos para a vida”. Elas fornecem mapas emocionais e morais, guiando-nos em nossas decisões e nos inspirando a enfrentar desafios. O professor Robert McKee, especialista em storytelling, reforça que histórias bem contadas iluminam os conflitos humanos universais enquanto refletem as nuances de cada sociedade. É por isso que narrativas são tão poderosas: elas têm o potencial de construir realidades. E também de destruí-las.

Goethe contou uma história que nos oferece uma reflexão profunda sobre o poder da narrativa. Fausto, insatisfeito com os limites do conhecimento humano, faz um pacto com Mefistófeles, o demônio sedutor que representa o caos e a destruição sob o disfarce da promessa de poder e prazer. Mefistófeles não precisa forçar Fausto a nada; ele apenas cria o ambiente perfeito para que a ganância e as fraquezas do protagonista o levem à perdição. Séculos depois, no universo de Batman, o Coringa emerge como um demônio de outra natureza. Enquanto Mefistófeles manipula pela sedução do desejo, o Coringa atua pela imposição do caos puro. Ele não oferece promessas, apenas destroi as estruturas e revela a fragilidade da ordem ao afirmar que o medo é o verdadeiro motor da humanidade. Em O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan, ele explica: “introduza um pouco de anarquia, perturbe a ordem vigente e tudo se torna um caos. A chave para o caos é o medo. Eu sou um agente do caos”

A diferença entre os dois demônios está na estratégia: um seduz, o outro aterroriza. Se Fausto representa a luta eterna entre a humanidade e seus próprios limites, o Coringa simboliza o colapso das estruturas sociais quando expostas à sua fragilidade mais fundamental. Ambos os relatos revelam que as histórias, sejam de superação ou destruição, têm o poder de nos definir. Elas são ferramentas para moldar mundos, mas também armas que podem demolir tudo o que foi construído.

Histórias não apenas refletem a condição humana; elas também são ferramentas de controle e transformação. McKee, ao falar sobre a arte da narrativa, argumenta que as grandes histórias têm o poder de transcender culturas, ressoando com os conflitos universais que enfrentamos. Mas, como bem demonstrou Edward Bernays, o sobrinho de Freud que criou as relações públicas e foi pioneiro na aplicação de princípios da psicologia e da psicanálise para moldar a opinião pública e influenciar comportamentos em massa. Ele acreditava que as emoções e os desejos inconscientes poderiam ser manipulados para promover produtos, ideias e ideologias. Em seu livro Propaganda (1928), expôs a ideia de que a manipulação da opinião pública era uma ferramenta indispensável para a sociedade moderna. Ele descreveu essa prática como “engenharia do consenso”, argumentando que, em democracias, líderes e empresas poderiam — e deveriam — moldar as atitudes do público para alcançar seus objetivos, mas a manipulação não deve ser percebida como tal; ela opera melhor quando as pessoas acreditam que estão tomando decisões independentes. Suas ideias são relevantes até hoje, especialmente no contexto de propaganda política, publicidade e, mais recentemente, na disseminação de fake news e desinformação em plataformas digitais, que, embora pareçam sinônimos, são fenômenos distintos.

Fake News são narrativas falsas, fabricadas para parecerem notícias verdadeiras. Elas se apoiam em uma combinação de persuasão emocional e estética que simula credibilidade. Já a desinformação é mais abrangente: trata-se de um ambiente em que a verdade é sistematicamente corroída por mentiras, manipulações e meias-verdades. Na era digital, a desinformação é alimentada pela velocidade com que as Fake News se propagam, superando em até 70% a disseminação de informações verdadeiras(1). Essa dinâmica não é trivial; ela tem consequências reais e devastadoras.

No Brasil, a desinformação impacta áreas como saúde, economia e programas sociais. Entre 2018 e 2024, o Brasil enfrentou uma queda significativa na cobertura vacinal, atingindo menos de 59% em 2021 e, embora tenha havido sinais de recuperação, em 2024, a maioria das vacinas ainda não atingiu a meta de 95% necessária para a imunidade coletiva(2,3). Para combater a desinformação, o Ministério da Saúde criou, em 2018, o programa “Saúde sem Fake News”, que permitia aos cidadãos verificar informações via WhatsApp. Em 2023, o programa foi ampliado e substituído pelo “Saúde com Ciência”, focado em desmentir fake news e divulgar informações confiáveis. Apesar disso, a eficácia é limitada, já que as fake news apelam para emoções fortes e se espalham rapidamente, enquanto campanhas institucionais enfrentam barreiras como linguagem técnica e falta de conexão emocional, dificultando o engajamento das comunidades vulnerabilizadas e das juventudes, que têm papel determinante nas mudanças sociais.

O uso de tecnologias como os Deepfakes torna o impacto das fake news ainda mais preocupante. Esses vídeos falsos, criados com inteligência artificial, já foram usados para atribuir falas inexistentes ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, espalhando a falsa informação de que o governo implementaria um imposto sobre transferências via Pix. Essa mentira gerou pânico, provocando uma queda de 15,3% no volume de transações nos primeiros dias de janeiro de 2025, em comparação com dezembro do ano anterior. Em resposta, o governo revogou o ato que ampliava a fiscalização sobre o Pix e prometeu emitir uma medida provisória para garantir que as transações não possam ser tributadas. Apesar de necessária, a medida evidencia como a desinformação pode pressionar o Estado a recuar em suas políticas.

O Programa Bolsa Família é alvo de desinformação que o acusa de criar dependência do governo. No entanto, cerca de 70% dos recursos do programa vão para os 20% mais pobres, reduzindo a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%(4). Na saúde, ele reduziu a mortalidade infantil em 16%, materna em 31% e a incidência de tuberculose em 50%(4,5).

Entre 2005 e 2019, 64% das crianças que foram beneficiadas pelo Bolsa Família não estavam mais no Cadastro Único em 2019, indicando que não necessitavam mais de assistência social. Além disso, 45% delas ingressaram no mercado formal de trabalho(6), demonstrando que o programa não só alivia a pobreza no curto prazo, mas também contribui para a mobilidade social e a ruptura de ciclos de pobreza geracional.

Como se faz uma Fake News?

Chico Science já anunciava que “são demônios os que destroem o poder bravio da humanidade”. A desinformação é um desses demônios modernos, corroendo nossa capacidade de discernimento e ação coletiva. As Fake news se assemelham a um pacto com o diabo: sedutoras e perigosas, oferecem respostas fáceis e emoções intensas em troca de nossa confiança, mas no final, cobram um preço alto ao corroer a verdade e semear o caos.

Primeiro, escolhe-se um tema polêmico ou que gere grande engajamento, como saúde, política ou economia. Em seguida, adiciona-se um forte apelo emocional, como medo ou indignação, para capturar a atenção do público. Esse conteúdo é lançado em plataformas digitais projetadas para amplificar o alcance de mensagens sensacionalistas, com o auxílio de algoritmos que priorizam o que mantém os usuários mais tempo online. Bots e grupos fechados em aplicativos como WhatsApp e Telegram ajudam a acelerar essa propagação, criando a sensação de que a informação é amplamente aceita e confiável. Tudo isso é potencializado pela falta de habilidades críticas para verificar a veracidade das informações.

Depois que a fake news começa a circular, ela ganha força com o “efeito de verdade ilusória”: quanto mais vezes a mentira é repetida, mais ela parece verdadeira. Além disso, o viés de confirmação das pessoas faz com que elas aceitem informações que reforcem suas crenças preexistentes e compartilhem com outros sem questionar. A cereja do bolo são tecnologias como deepfakes, que tornam vídeos e áudios falsos extremamente realistas, aumentando a credibilidade da mentira. O resultado final é uma mensagem que se espalha como fogo em palha seca, enquanto os esforços para desmentir chegam tarde demais, frequentemente ignorados por aqueles que já foram convencidos pela narrativa falsa.

Como se destroi uma Fake News?

Fé pra quem é forte,
Fé pra quem é foda,
Fé pra quem não foge à luta,
Fé pra quem não perde o foco,
Fé pra enfrentar esses filha da pu…
(Iza)

A psicologia de massas demonstrou que, quando líderes não oferecem um exemplo claro, as pessoas se apegam a clichês, palavras e imagens que sintetizam ideias complexas. Para combater de verdade as fake news e a desinformação, é preciso mais do que desmentidos institucionais. É necessário traduzir complexidades sociais em slogans curtos e de impacto, manter um relacionamento dialógico, cotidiano e muito próximo com os diferentes grupos que compõem o tecido social e compreender que o engajamento não se resume a curtidas e compartilhamentos, mas à criação de comunidades online capazes de se traduzir em ações políticas concretas e a extrema direita percebeu que as tecnologias de comunicação digital são excelentes para isso.

O poder público precisa abandonar a comunicação fria, burocrática e técnica, substituindo-a por narrativas que emocionem, inspirem, eduquem, entretenham e promovam pertencimento. Já fizemos isso antes! Quem não se lembra do Orgulho de Ser Brasileiro ou do Meu País, Maranhão? Esse processo envolve fazer com que as pessoas se sintam protagonistas, transformando-as em defensoras das políticas públicas e em agentes ativos na construção e disseminação da verdade. É preciso inverter o jogo: deixar de jogar na defensiva, com o time retrancado e começar a colocar a mentira para correr atrás. Fake news se espalham rapidamente porque apelam às emoções, são simples e exploram o alcance das redes sociais e uso de bots. Para equilibrar esse jogo, é essencial usar narrativas emocionais baseadas na verdade, contando histórias reais que conectem as pessoas. Ferramentas de inteligência artificial podem ser utilizadas para identificar e marcar conteúdos falsos em tempo real, enquanto campanhas educativas, criativas e massivas ensinam o público a questionar e verificar informações. Além disso, parcerias público-privadas entre governos, sociedade civil, movimentos sociais e plataformas digitais podem acelerar a remoção de fake news e destacar informações confiáveis. Não se deve deixar essa responsabilidade apenas nas mãos das empresas gigantes da tecnologia, que lucram com a desinformação.

A criação de comunidades engajadas é outra estratégia poderosa, promovendo um senso de pertencimento e transformando cidadãos e cidadãs em aliados no combate à desinformação. Canais oficiais e confiáveis, com linguagem acessível e proatividade, ajudam a reduzir a vulnerabilidade do público, enquanto o uso de storytelling segmentado e humor torna as mensagens mais atrativas e virais. Embora nenhuma solução isolada seja suficiente, uma combinação de ações rápidas, criativas e coordenadas, que priorizem emoção, clareza e conexão com o público, pode equilibrar o impacto das fake news e reconstruir a confiança na informação.

Quem Ganha com a Desinformação?

A desinformação não é gratuita e espontânea; ela serve a interesses específicos. Quem se beneficia? A extrema direita e seus aliados do capital financeiro que desejam polarizar a sociedade; as grandes empresas de tecnologia como Meta, Google e Twitter que lucram com cliques em conteúdos sensacionalistas; nações estrangeiras que buscam enfraquecer a coesão social de outros países para submetê-los aos seus próprios interesses num novo colonialismo; a ideologia neoliberal do lucro a qualquer custo; o capitalismo financeiro. O caos informacional não é um acidente, mas um projeto deliberado, extremamente bem executado, monitorado e constantemente melhorado.

Fé para enfrentar esses filha da Pu…

O Coringa não busca redenção nem concede essa possibilidade ao Batman; seu objetivo é expor a escuridão dentro de cada ser humano. Enquanto Fausto vence Mefistófeles no fim, o Coringa triunfa ao empurrar o Batman para as sombras, obrigando-o a assumir um papel que o afasta de sua identidade heroica.

É muito importante dizer que a história de Fausto é também uma narrativa de redenção. Embora pareça condenado, ele consegue enganar Mefistófeles ao usar sua inteligência e vontade de buscar algo além do que o demônio poderia oferecer. Fausto transcende suas limitações no final, provando que a humanidade, mesmo em suas falhas, é capaz de resistir ao caos e de se reerguer.

Sigo acreditando que nossa sociedade pode muito mais do que simplesmente se submeter aos demônios da desinformação e da manipulação. Este tempo histórico em que vivemos é uma oportunidade de ação e não de aceitação passiva. Assim como Fausto, somos movidos por sentimentos contraditórios, que incluem insatisfação, dúvida existencial, medo, abandono, traição, manipulação, rejeição, arrependimentos, tristeza, raiva e humilhação, mas também amor, compaixão, esperança, engenhosidade, alegria, empatia e solidariedade. Nós buscamos a plenitude e o progresso, queremos deixar o nosso legado, melhorar de vida, viver em paz, nos conectar com as pessoas, pertencer verdadeiramente a algo maior, engrandecer nosso significado, ter uma importância maior do que o pó que somos. Queremos ser vistos, ouvidos, respeitados e amados e desejamos também entregar todo o amor que temos guardado.

A diferença está em como escolhemos canalizar nossas emoções. Fausto nos ensina que, mesmo em meio às falhas e às tentações, podemos encontrar redenção ao nos reconectar com nossos valores e aspirações mais nobres. Enquanto tivermos coragem para reescrever nossas narrativas com base na verdade, na justiça e no amor, manteremos o poder bravio que nos define como humanos. Afinal, são as histórias — e quem as conta — que têm o poder de transformar não apenas indivíduos, mas sociedades inteiras. Com Vermelho.

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