Figuras como o deputado mineiro nem precisam nos derrotar. Saem ilesos enquanto nos convencem a derrotar a nós mesmos.
Ricardo Queiroz Pinheiro
Charles Baudelaire escreveu um poema intitulado “Heautontimoroumenos”, traduzido como “Carrasco de Si Mesmo”. É uma reflexão sobre o paradoxo de infligir dor a si próprio, sendo simultaneamente vítima e verdugo. Baudelaire não escreveu pensando nos defensores do neoliberalismo, mas é impossível não fazer a conexão com aqueles que repetem, com fervor, ideias que sabotam suas próprias condições de vida e deixam a vida de figuras como Nikolas Ferreira muito fácil.
Trabalho duro, foco nos objetivos, força de vontade. Máximas que me perseguem desde sempre. “Quem quer, faz.” “Quem não chega lá é porque não se esforçou o suficiente.” “Todo mundo tem as mesmas 24 horas no dia.” Essas frases, tão presentes em almoços de família, grupos de WhatsApp e campanhas publicitárias, ajudam a transformar desigualdade em mérito ou falha pessoal.
Na lógica do mérito, o fracasso não é consequência de contextos adversos, mas um problema moral. “Se eu consegui, qualquer um consegue” é o mantra de quem ignora os abismos que diferenciam as condições de vida. Quem não consegue, dizem, é porque não tentou o suficiente. “Quem é pobre é porque quer.” Assim, o sofrimento é isolado e despolitizado, desviando o olhar do que realmente cria essas barreiras;
O empreendedorismo é vendido como solução mágica. “Seja seu próprio patrão.” “Empreenda.” “Invente algo!” Mas a promessa de autonomia frequentemente resulta em jornadas exaustivas, sem direitos ou futuro. A precariedade ganha novos nomes, e quem sofre ainda agradece por isso.
Enquanto isso, o Estado vira o vilão perfeito. “Menos governo, mais liberdade.” “Imposto é roubo.” “Política pública só cria dependência.” Esse discurso justifica o desmonte de serviços essenciais como saúde, educação e previdência, enquanto privilégios econômicos seguem intocados. O foco nunca é nos grandes devedores ou nas desigualdades, mas em culpar quem ainda depende desses recursos.
Após décadas de trabalho, a aposentadoria oferece migalhas enquanto os privilégios de poucos permanecem blindados. Reformas aumentam a idade, cortam direitos e ignoram os grandes devedores que drenam recursos do sistema, perpetuando uma lógica que penaliza quem mais contribuiu.
Vendem o discurso da “insustentabilidade”, mas deixam isenções e calotes protegidos. E para aqueles que dizem, com autoindulgência, que “nunca vão se aposentar”, resta a ilusão de que o trabalho infinito é liberdade, quando na verdade é só mais uma face do esgotamento.
A resistência coletiva é deslegitimada em todos os âmbitos. Sindicatos são “roubo do trabalhador”; cotas, “privilégio”; protestos, “vagabundagem”. A solidariedade vira fraqueza, e o apoio mútuo é ridicularizado. Sem força coletiva, as pessoas ficam isoladas, incapazes de pressionar ou resistir a mudanças que só favorecem poucos.
Os impostos recaem mais pesadamente sobre pobres, enquanto os ricos acumulam isenções e privilégios fiscais. Isso é uma regra. Quem vive com o mínimo arca com a maior carga, enquanto os mais abastados encontram formas de pagar menos ou nada. E ainda convencem os ferrados de que o problema é o “Estado inchado”.
A menção a Baudelaire, no fim, soa como um escárnio: carrascos de si mesmos, que, em vez de questionar o que os limita, defendem com fervor ideias que só os afundam. Não precisam tirar nada de ninguém, porque nos ensinam a entregar. Fazem com que aceitemos o inaceitável, chamemos exploração de liberdade e vejamos no esgotamento uma virtude. Fazem acreditar que o mundo que oferecem é o único possível.
No final das contas, nem precisam nos derrotar. Nos convencem a derrotar a nós mesmos — e deixam a vida de figuras como Nikolas Ferreira muito fácil.
(Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, pesquisador e doutorando em ciências humanas e sociais.)
*Opera Mundi