“Haverá muita pressão sobre nossa região e sobre a democracia do Brasil, gerada por forças internas, em forte articulação internacional”, escreve Marcelo Zero.
A imprensa conservadora e a direita brasileira são bastante curiosas em suas avaliações sobre as ameaças à democracia.
Exibem uma compulsiva e pungente preocupação com grandes potências militares, econômicas e geopolíticas, como Cuba e Nicarágua, por exemplo, que, como se sabe, exercem forte e solerte influência em todo o mundo.
Outra pujante potência, no auge de seu poderio, a Venezuela, tornou-se, por sua parte, uma verdadeira obsessão. Pelo que lemos e ouvimos, Maduro não é só maior ditador da história da humanidade, mas também uma gravíssima ameaça ao Brasil e a toda a América Latina.
Mesmo com o governo brasileiro não tendo reconhecido o resultado das recentes eleições e esfriado muito as relações com Caracas, após o desapontamento com o descumprimento do Acordo de Barbados, a nossa mídia, furiosa com a posse de Maduro, exige condenação enérgica do Brasil, a qual implicaria o rompimento das relações diplomáticas com Caracas e a inviabilização definitiva de quaisquer negociações com o governo “de facto” do nosso estratégico vizinho. Querem que Lula repita o erro crasso de Bolsonaro, que agravou os problemas internos da Venezuela. As draconianas sanções e o isolamento só prejudicam a população mais pobre e frágil da Venezuela.
Mas a questão central aqui é que esses países, curiosamente todos de esquerda, não representam ameaça à democracia brasileira, embora existam muitos atritos atuais entre Manágua e Brasília e Caracas e Brasília. Tampouco representam real perigo para as democracias da nossa região e para o mundo.
Quem acha que Maduro tem condições de intervir em Essequibo, por exemplo, está extremamente mal-informado ou faz “análises fake”.
Mesmo potências reais, como China e Rússia, não representam nenhuma ameaça à nossa região. Só quem teve o cérebro congelado durante a primeira Guerra Fria acredita nos cânones da segunda Guerra Fria.
Se a nossa mídia conservadora procura verdadeiras ameaças à nossa região e às nossas democracias deveria olhar para outras direções. Mais especificamente, deveria mirar para o Norte do continente americano.
Lá, está prestes a tomar posse, na maior potência do planeta, um presidente que, além de não ter compromisso algum com democracia, tanto interna quanto externamente, é escancaradamente intervencionista e expansionista.
Segundo várias organizações estadunidenses comprometidas com a defesa da democracia, como a American Progress e a American Civil Liberties Union (ACLU), Trump, baseado no Projeto 2025, da organização de extrema-direita Heritage Foundation, intentará implantar um “presidencialismo imperial” nos EUA, uma espécie de “autocracia”, à semelhança de países como a Hungria, por exemplo.
Essa agenda antidemocrática está fundamentada na “teoria unitária do Executivo”. Essa filosofia de governo, visa a minar a separação tradicional de poderes e a conferir ao Presidente controle quase completo sobre a burocracia federal, incluindo agências independentes designadas pelo Congresso, ou ainda o DOJ e o FBI.
Nesse sentido, a agenda inclui a constituição de banco de dados de pessoal leal à extrema-direita para potencialmente substituir dezenas de milhares de servidores públicos federais; uma ferramenta educacional privada online para treiná-los; e um manual com planos de transição para cada agência federal. A Heritage Foundation pretende incluir 20.000 pessoas no banco de dados e já está levando seus esforços de recrutamento para todo o país.
A ideia básica é substituir a burocracia profissional por uma burocracia fortemente politizada.
Na realidade, Trump já está dedicado, há meses, a aparelhar toda a máquina do Estado com indivíduos que, por mais desqualificados que sejam, lhe dediquem fidelidade canina. Ele quer, inclusive, que todos os funcionários públicos prestem juramento ao MAGA.
Toda, ou praticamente toda a sua equipe, é composta por gente ligada ao MAGA e às suas propostas de extrema-direita. Quadros republicanos conservadores, porém moderados e racionais, estão sendo excluídos.
Como já escrevi, é uma Armada de Brancaleone de gente desqualificada, mas que terá imenso poder para cumprir as tarefas mais estapafúrdias e de legalidade duvidosa.
Ressalte-se que a maioria de extrema-direita da Suprema Corte dos EUA proferiu, recentemente, uma decisão que abalou a democracia estadunidense e que praticamente coloca o Presidente acima da lei, pela primeira vez na história americana. A Suprema Corte, com efeito, reescreveu a constituição americana ao decidir que o Presidente é amplamente imune a processos criminais e, portanto, não pode ser responsabilizado se violar leis, ao realizar “atos oficiais”.
Faz parte também dessa agenda reacionária procurar restringir ou dificultar o voto para grupos demográficos que tendem a votar nos Democratas. Trump quase que certamente rescindirá a Ordem Executiva 14019 do Presidente Biden sobre a Promoção do Acesso ao Voto. Essa Ordem Executiva inclui medidas destinadas a mitigar barreiras para indivíduos com deficiências e melhorar a educação do eleitor e as oportunidades de registro sob a Lei Nacional de Registro de Eleitores (NVRA). Isso incidiria, majoritariamente, sobre negros, latinos e pobres em geral.
Muito provavelmente, também Trump intentará um processo do que se chama nos EUA de gerrymandering. Trata-se de controverso método de desenhar ou redesenhar os distritos eleitorais, de forma a se obter vantagens para candidatos políticos de determinado perfil. Neste caso, haveria o redesenho dos distritos eleitorais para beneficiar candidatos conservadores.
A ideia de Trump, da Heritage Foundation e do MAGA é, portanto, a de tentar consolidar e eternizar uma opção política de extrema-direita nos EUA e de limitar fortemente o escopo da democracia estadunidense.