O ‘regimento interno’ de Arthur Lira

O ‘regimento interno’ de Arthur Lira

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O que domina o funcionamento da câmara são acordos fechados longe dos olhos da população, da imprensa e até mesmo de alguns parlamentares.

Circula nos celulares de funcionários da Câmara dos Deputados e de assessores parlamentares, em Brasília, uma figurinha que cristaliza a essência do mandato de Arthur Lira na presidência da casa. “Está no RIL, Regimento Interno do Lira”, diz a legenda sobreposta à foto do rosto de Lira. Sempre que é preciso explicar o inexplicável, ou o descumprimento de alguma regra, lá vem a figurinha.

A brincadeira, nos bastidores, reflete a insatisfação de deputados e assessores que se recusam a naturalizar o desrespeito às normas e procedimentos da Câmara. O deputado federal carioca do PSOL, Chico Alencar, notou as mudanças ao voltar ao Congresso em 2023. Chico cumpre o quinto mandato, mas passou quatro anos fora de Brasília quando perdeu a eleição de 2019. Nessa volta, ele estranhou a sigla usada com frequência nos corredores da Câmara: “reunião na RO”.

Completando agora um ano e nove meses de volta ao Brasil e de mergulho no Congresso Nacional, como jornalista, também precisei da ajuda dos colegas para “traduzir” a tal da RO. Residência Oficial, me informaram os jornalistas com mais tempo de estrada em Brasília.

É lá, na RO, onde mora o Presidente da Câmara, que Lira costuma reunir os líderes dos diferentes partidos para discutir e negociar projetos e pautas de votação. “Era só em caso de confraternização que a gente se reunia lá”, relembra Chico Alencar se referindo a outros tempos um pouco mais republicanos.

Durante a presidência de Lira, a reunião do chamado Colégio de Líderes é sempre marcada na casa dele e não na Câmara, onde sempre aconteceu. E mais: nem todos os líderes são convidados para todas as reuniões. “Muitas vezes nem somos convidados e quando descobrimos que está acontecendo, a gente aparece”, contou a deputada Sâmia Bonfim (PSOL/SP). E só conseguem entrar porque fizeram amizade com o porteiro, ou segurança.

Nas reuniões do passado, conta Chico Alencar, apesar de se ver sempre na minoria em várias discussões, ele testemunha que conseguiu reverter algumas propostas na base do diálogo. Da troca de ideias. Não era fácil, mas existia essa possibilidade. Afastar os políticos da chamada “casa do povo” e forçar que se reúnam na casa dele, onde tem o controle da situação e da lista de convidados, foge aos padrões que regiam a Câmara até a posse de Lira.

Foi na tal RO que Arthur Lira reuniu alguns dos líderes partidários para assinar um ofício secreto com a lista de emendas, no valor de R$ 4,2 bilhões, que exigiram ver aprovada pelo governo antes de dar seguimento à votação do pacote de ajuste fiscal apresentado pelo Ministério da Fazenda. Ou seja: foi o clássico “pedido” que, se não fosse atendido, inviabilizaria todo o plano do ministro Fernando Haddad para controlar as contas do governo.

O deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) ocupou a tribuna na última semana de trabalho do ano para denunciar a manobra durante a discussão da reforma tributária. Arthur Lira cortou o microfone de Glauber alegando que ele não estava tratando da matéria em discussão. R$ 4,2 bilhões sendo aprovados para pagamento de emendas, sem o nome dos responsáveis pelo pedido… Me parece parte intrínseca do debate sobre as contas do governo.

Mas não é só a esquerda que volta e meia é silenciada. No dia 14 de outubro, por exemplo, o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS), uma das vozes mais estridentes da extrema direita na câmara, pedia uma questão de ordem para inverter a pauta e retirar de discussão a Proposta de Emenda à Constituição que altera a composição do Conselho Nacional do Ministério Público. O microfone de Van Hattem ficou mudo e ele chamou Lira de autoritário.

Se o exemplo vem de cima ou se a nova leva de deputados nada democráticos inspira Arthur Lira é discussão para antropólogos com estômago para acompanhar o que se passa no congresso. Mas a turma da direita costuma interditar o debate na marra.

Na terça-feira, 18 de dezembro, Gleisi Hoffmann, presidente do PT e deputada federal pelo Paraná, subiu à tribuna para falar sobre o Benefício de Prestação Continuada, o BPC. Ela acusou a bancada bolsonarista de hipocrisia porque, supostamente em defesa dos mais vulneráveis, se recusava a aprovar as mudanças no programa, propostas pelo governo.

Gleisi destacou: “Vocês passaram quatro anos sem dar aumento real para o salário mínimo, que é a base de cálculo do BPC”. Se tinham tanta preocupação com os deficientes e idosos, por que não fizeram nada durante os quatro anos do governo Bolsonaro?” Mas foi difícil terminar o raciocínio. Os bolsonaristas gritavam e fizeram de tudo para impedir a fala da petista. Foi preciso chamar a segurança legislativa para garantir a palavra de Gleisi que, em sinal de apoio, foi acompanhada, na tribuna, por deputadas e deputados de diversos partidos.

Chico Alencar reclama da inversão de objetivos do Legislativo, que deveria ser o local para o debate de ideias. Não existe debate. O que domina o funcionamento da câmara são acordos fechados longe dos olhos da população, da imprensa e até mesmo de alguns parlamentares. Na maior parte do tempo, envolvendo cifras milionárias. São poucos os que se levantam contra a prática nada democrática que impera.

Glauber Braga é réu em um processo de cassação no Conselho de Ética, o que em geral suscita muita negociação, pedidos de desculpas nos bastidores e outras manobras. Ele se recusou e optou pela luta política. Foram várias manifestações, dentro e fora da Câmara, de movimentos sociais em defesa do mandato. No dia 18 de dezembro, representantes desses movimentos entregaram um abaixo assinado, com mais de 50 mil nomes, ao relator do processo de cassação exigindo a manutenção do mandato do deputado.

Outras manobras menos visíveis para os leigos da atividade legislativa também foram adotadas, de forma permanente, na administração Lira. As sessões ordinárias da câmara praticamente desapareceram. Agora, todas são extraordinárias, destaca Chico Alencar.

Antes da eleição de Lira, as sessões começavam às 14 horas e iam até às 18. Para continuar com os debates e votações, era preciso abrir uma nova sessão, o que dava à minoria a oportunidade de obstruir os trabalhos pedindo um novo painel. Agora, as sessões são abertas às 13:55, como extraordinárias, o que permite que sigam abertas indefinidamente.

A deputada Adriana Ventura (Novo-SP) reclama que a pauta das discussões e votações nunca é divulgada com antecedência. Ninguém tem a programação antecipada dos debates. Isso torna impossível estudar e se aprofundar nos temas, e elimina qualquer possibilidade de negociação entre os deputados, ou de convencimento a respeito das propostas.

As medidas chegam ao plenário com acordos pré-estabelecidos e votações com resultados garantidos. Jogo de cartas marcadas. Da mesma maneira que controla a distribuição do volume de emendas parlamentares, Lira também mantém mão firme sobre as votações. É uma forma de exercer o poder, chantageando o governo mas garantindo o resultado das votações. “Tem que comprar mesmo, o governo não tem os votos aqui”, me disse, resignado, um assessor parlamentar com experiência na casa.

Em 2025, a câmara terá um novo presidente. O acordo está firmado e selado pela maioria. Hugo Motta (Republicanos-PB) será o novo presidente. Resta desejar que o novo ano traga novas práticas à Câmara. Porém, é difícil imaginar que as regras inauguradas por Lira, e por seu antecessor, Eduardo Cunha, sumam do mapa no futuro próximo.

*Heloisa Villela/ICL

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