O secretário da Segurança Pública (SSP), Guilherme Derrite, publicou, nesta terça-feira (26/11), uma resolução administrativa que cria uma Ouvidoria da Segurança Pública em que o próprio secretário escolhe quem é o ouvidor e que será subordinado a ele.
Apesar de o texto apontar que as atribuições desse novo órgão não serão as mesmas da Ouvidoria das Polícias, instituída por decreto no estado em 1995 e depois por lei em 1997, parte das funções descritas são muito semelhantes: a coleta e o acompanhamento de reclamações, elogios e denúncias. Para especialistas entrevistados pela Ponte, a iniciativa parece ser uma forma de deslegitimar e esvaziar o trabalho da Ouvidoria das Polícias, já consolidada e que se destaca especialmente cobrar fiscalização de denúncias de violência policial.
“A resolução não guarda nenhum respaldo na legalidade”, afirma Claudio Aparecido da Silva, atual ouvidor das Polícias. “Eu avalio que essa postura é mais um capítulo de uma novela que todos temos assistido ao longo dos anos em que essa gestão está construindo a segurança pública. É um caminho que abre mão do diálogo, da construção conjunta, para agir com truculência, arbitrariedade”, critica.
Manifestante escreve cartaz com dizeres “exigimos um ouvidor eleito” em ocupação do prédio da Ouvidoria das Polícias, no centro de São Paulo, em fevereiro de 2022 (Foto: Gil Luiz Mendes/Ponte Jornalismo)
O ex-ouvidor Benedito Mariano, que foi o primeiro a ocupar o cargo em 1995 e atuou novamente entre 2018 e 2020, considera a resolução “um retrocesso” e uma tentativa de enfraquecer o controle social das polícias. “A Ouvidoria da Polícia é órgão autônomo e independente e o ouvidor tem mandato para fiscalizar as atividades policiais”, explica.
“Esta ouvidoria criada no âmbito da SSP é um órgão totalmente administrativo e sem nenhuma independência. É uma ouvidoria chapa branca”, avalia.
Resolução sobre a ouvidoria
A resolução diz que a nova ouvidoria “tem como finalidade fortalecer as estratégias de gestão participativa, ampliando a contribuição social e incluindo nas decisões da gestão, as avaliações, as opiniões e as ideias geradas pelos usuários dos serviços prestados pela Pasta, bem como a possibilidade de avaliação contínua da qualidade dos serviços prestados pela Secretaria da Segurança Pública”.
A pedido da reportagem, o diretor de Litigância e Incidência da ONG Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, analisou o texto. Para ele, a normativa causa insegurança jurídica pois pode desencadear uma disputa de atuação e de descrédito do órgão já existente. “A estrutura, apesar de buscar um certo verniz de legalidade e de suposto respeito à atual Ouvidoria, em verdade acaba gerando uma situação de conflito de atribuições. É certamente uma resposta ao trabalho bastante dedicado da atual gestão da ouvidoria”, afirma.
Gabriel entende que a norma vai “gerar um clima de instabilidade e emular justamente setores conservadores e avessos ao controle da violência institucional a prestigiar essa nova estrutura”.
Para o diretor da Conectas pode ocorrer até uma disputa por recursos públicos, tendo em vista que o orçamento da Ouvidoria não é dos maiores. “Hoje, é momento de se prestigiar e investir na atual estrutura, que é referência nacional do ponto de vista do formato de eleição, de indicação e da construção de uma independência funcional, mas que precisa certamente de investimento e de respaldo das instituições do governo do Estado. Então, uma estrutura como essa que se propõe agora acaba, até do ponto de vista dos recursos públicos, competindo com a estrutura que funciona melhor para a sociedade”, analisa.
A medida ocorre em paralelo ao processo eleitoral que vai definir o ouvidor que atuará pelo próximo biênio. Pela lei de 1997, o cargo de ouvidor é exercido por um mandato de dois anos, prorrogáveis por mais dois. O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), ligado à Secretaria de Justiça e Cidadania, é responsável por avaliar as inscrições e definir os candidatos que cumprem os requisitos. Os mais votados compõem uma lista tríplice que o conselho envia ao governador, que, por sua vez, decide quem ocupará a vaga.
Claudio Silva, o atual ouvidor, decidiu concorrer novamente. Ele recebeu 9 votos. Os outros dois candidatos mais votados foram os advogados Valdison Anunciação Pereira (8 votos) e Mauro Caseri (7 votos). Como a ativista Luana de Oliveira recebeu apenas 2 votos, ela ficou de fora da lista tríplice definida em eleição no dia 18 de novembro. Caso nenhuma parte entre com recurso para contestar o resultado da votação, a lista vai direto para o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que deve escolher o ouvidor entre os três nomes da lista.
Não é de hoje que a atuação e a própria existência da Ouvidoria da Polícia tem sido alvo de ataques por setores da extrema direita. Já no início da gestão, em fevereiro de 2023, Derrite criticou o pedido de afastamento das funções durante a investigação, feito por Claudio, de policiais militares que mataram Luiz Fernando Alves de Jesus, de 20 anos, caído num cruzamento de trânsito. O secretário defendeu a ação dos agentes antes de qualquer apuração.
Na época, deputados da Bancada da Bala da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) atacaram a conduta do ouvidor e ressuscitaram a discussão de projetos de lei que propõem a extinção da Ouvidoria. Como a Ponte mostrou em outubro deste ano, dois integrantes da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força especial da PM paulista, viraram réus pela morte do jovem negro mas o secretário não se manifestou.
A Ouvidoria também tem se destacado nas denúncias de violações de direitos humanos feitas durante as Operações Escudo e Verão que somaram 94 mortes entre 2023 e 2024 após assassinatos de policiais militares na Baixada Santista.
O próprio Derrite, antes de comandar a secretaria, quando exercia o cargo de deputado federal, defendeu o projeto de extinção da Ouvidoria, conforme um vídeo publicado em 27 de julho de 2020, no Facebook do então deputado estadual Frederico D’Ávila (que pertencia ao antigo PSL, atual União Brasil), que é autor da proposta. Nele, ainda afirmou, de forma equivocada, que o Condepe nomeia o ouvidor, o que, na verdade é atribuição do governador do estado.
Outro projeto, do mesmo autor, é o PL (Projeto de Lei) nº 618 de 2019, no qual diminui a participação popular no Condepe e inclui representantes das forças policiais, além de vincular a Ouvidoria à Secretaria da Justiça e Cidadania.
Durante a discussão da nova Lei Orgânica das Polícias Militares e dos Bombeiros Militares, o papel das ouvidorias também esteve em pauta no ano passado. Após pressão de organizações da sociedade civil e inclusive de alguns ministérios, como a pasta de Direitos Humanos, o presidente Lula (PT) vetou o trecho aprovado pelo Congresso Nacional que previa a criação de ouvidorias subordinadas aos comandos-gerais das PMs, o que, caso tivesse sido mantido, também poderia esvaziar o trabalho das ouvidorias independentes como a de São Paulo, na avaliação de ouvidores e especialistas.
A Ouvidoria das Polícias de São Paulo é a primeira do Brasil. Ela é ligada à Secretaria da Segurança Pública e tem, dentre suas atribuições, o intuito de receber denúncias e reclamações sobre ações arbitrárias e abusivas cometidas por integrantes das polícias (militar, civil ou científica), verificá-las e cobrar respostas das autoridades competentes, seja no âmbito administrativo dentro da própria polícia e da pasta, como também do Ministério Público. Os próprios policiais podem recorrer ao órgão. A Ouvidoria também produz pesquisas e propõe melhorias no campo da segurança pública e direitos humanos.
O que diz o governo
A Ponte procurou a SSP sobre a resolução. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:
A escolha do Ouvidor das Polícias será feita no momento adequado, obedecendo ao ritual e às atribuições definidas pela legislação vigente. A criação de um Conselho de Usuários de Serviços Públicos e de uma unidade setorial de Ouvidoria estão em curso pela SSP, conforme determinam a Controladoria Geral do Estado (Resolução nº 23/23) e o Decreto Estadual nº 68.156, de 9 de dezembro de 2023. As duas unidades integrarão o Sistema de Ouvidoria do Poder Executivo, sem dividir atribuições com a Ouvidoria das Polícias, que seguirá responsável por receber denúncias de violações dos direitos fundamentais por policiais.