Débora Nunes, da coordenação nacional do MST, esteve na China em outubro na maior feira asiática desses equipamentos
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) iniciou este ano um intercâmbio de tecnologia com a China com o objetivo de massificar a produção agroecológica nos assentamentos, eixo central do projeto de reforma agrária popular defendida pelo movimento.
Em fevereiro, uma primeira leva de 30 máquinas chinesas chegou ao Brasil para serem testadas no Rio Grande do Norte, e mais 50 máquinas chegarão nos próximos meses na capital federal, onde será testada em uma pesquisa conduzida pela Universidade de Brasília (UnB).
Em outubro, Débora Nunes, da coordenação nacional do movimento, participou da delegação brasileira que visitou a Exposição Internacional de Máquinas Agrícolas da China, a maior feira do setor da Ásia, em uma articulação para que, no médio prazo, essas máquinas passem a ser produzidas no Brasil. Ela aponta que a chegada desses equipamentos representa uma “reparação histórica” para a população camponesa e pode contribuir para aumentar a produtividade no campo e fortalecer a agricultura familiar no país.
“O que foi feito com a agricultura familiar no que se refere à mecanização é um crime cometido contra os camponeses e camponesas e nós não podemos naturalizar. Com a quantidade de tecnologia e conhecimento que a humanidade desenvolveu, nós não podemos admitir que, em muitas realidades, a enxada ainda seja a única ferramenta disponível para que agricultores familiares possam produzir alimento para enfrentar a fome e para chegar na mesa do povo brasileiro”, disse Nunes, em entrevista ao Brasil de Fato, durante o seminário Tecnologia e inovação: a agroecologia na reforma agrária, evento patrocinado pela Finep e realizado no Rio de Janeiro, entre os dias 12 e 14 de novembro.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Você esteve na China em outubro e conheceu uma variedade de máquinas agrícolas que atendem as demandas da agricultura familiar. Como essa experiência chinesa pode contribuir para o processo da reforma agrária popular no Brasil?
Débora Nunes: A experiência na China inicia com uma conferência, puxada pela Universidade Agrícola da China, que debate os 50 anos das relações diplomáticas Brasil-China. É importante que no marco desses 50 anos, algo que não era até então a prioridade, não estava na centralidade, seja discutido, que é justamente é agricultura familiar. Isso também nos sinaliza para que os próximos 50 anos das relações diplomáticas Brasil-China podem ter a agricultura familiar como uma centralidade. Uma das questões que chamam atenção nessa visita, com diversas organizações camponesas do Sul Global, é que a questão da mecanização tem uma centralidade grande nessa construção.
Primeiro porque além de a China ter realizado a própria Revolução Chinesa, foi realizada a reforma agrária. Então efetivamente a terra na China é democratizada, ela está na mão dos camponeses e camponesas, diferente do Brasil, onde nós temos ainda 4 milhões de famílias sem terra. Além da reforma agrária, pensar a agricultura camponesa sempre esteve na centralidade do desenvolvimento chinês. Então não é algo que acontece aleatoriamente, mas tinha intencionalidade e o próprio Mao [Tse Tung (1893-1976), líder da Revolução Chinesa e fundador da República Popular da China] colocava isso, que dentre as necessidades essenciais para o desenvolvimento da agricultura camponesa, a mecanização cumpre um papel importante e isso foi o que nós vimos.
Nós tivemos a oportunidade, além de debates na universidade, de ver como que é pensada essa estratégia da mecanização para agricultura camponesa chinesa. Conseguimos também vivenciar a experiência de conhecer uma feira de inovação tecnológica e mecanização agrícola com mais de 2 mil expositores, que tem desde grandes empresas a empreendimentos de camponeses. Aquilo encanta, porque é uma diversidade de máquinas de implementos agrícolas que efetivamente contribuem para o desenvolvimento da agricultura, para a facilitação do processo da mão de obra. Potencializa a mão de obra tirando a penosidade do trabalho, nas diversas cadeias produtivas. A gente vê máquina para preparar o solo, do plantio com as plantadeiras, máquina que vai ajudar nos tratos culturais, a colheitadeira. É uma diversidade e tem máquinas pequenas, que correspondem às necessidades e expectativas dos camponeses.
Como o MST avalia a mecanização hoje no campo brasileiro?
É uma coisa fantástica olhar isso na China, um país que tem mais de 8 mil empresas que produzem máquinas agrícolas, em especial para a agricultura camponesa. Mas, por outro lado, é um choque com a realidade do Brasil. Lamentavelmente, no Brasil a mecanização é algo que está muito distante de ser uma realidade, sobretudo da agricultura familiar. A gente pega os dados gerais, é em torno de 13% que tem cobertura de mecanização. Mas se a gente pega regiões como Nordeste, em torno de 3% tem cobertura da mecanização.
A China tem mais de 8 mil empresas que produzem máquinas agrícolas / Eduardo Moura/BdF
Para nós, o que foi feito com a agricultura familiar no que se refere à mecanização é um crime cometido contra os camponeses e camponesas e que nós não podemos naturalizar, achar que isso é uma coisa normal. Com a quantidade de tecnologia e conhecimento que a humanidade desenvolveu, nós não podemos admitir que, em muitas realidades, a enxada ainda seja a única ferramenta disponível para que agricultores familiares possam produzir alimentos essenciais para enfrentar a fome e chegar na mesa do povo brasileiro. Esse choque de realidade de fato nos assusta, mas ao mesmo tempo nos dá muito ânimo porque nos mostra que é possível. É lógico a China, com outras condições, outras perspectivas e prioridades, avançou, então nós também podemos fazer.
A China enviou algumas máquinas para serem testadas por agricultores familiares no Brasil. Como está esse processo?
Nós estamos construindo uma perspectiva mais estratégica de médio e longo prazo e um passo que já está acontecendo é o processo de testagem. Porque não é só transferência de tecnologia, mas uma construção de um processo que possa dizer como essas máquinas que são produzidas na China podem vir para o Brasil. Isso começou a acontecer desde fevereiro, na experiência com o Rio Grande do Norte, com a chegada de 30 máquinas e agora com o indicativo de que, nos próximos meses, vão chegar em torno de 50 máquinas na UnB em Brasília. Essas máquinas estão vindo justamente para serem testadas no Brasil porque tem realidades diferentes de solo, de topografia, então a testagem das máquinas dentro de um campo, de uma articulação de pesquisa, de estudo, monitoramento e testagem, é justamente para a gente poder dizer quais máquinas são as mais adequadas para a realidade brasileira, que ajustes são necessários para atender as necessidades e expectativas de demanda da agricultura familiar no Brasil. Isso está sendo feito em parceria com universidades, com professores, com a academia, para que possa fazer essa sistematização e apontar o que precisa ser ajustado.
A nossa proposição é que é indústrias possam ser instaladas no Brasil, então a nossa grande tarefa não é importar a máquina da China, mas sim aproveitar a expertise dessa diversidade fantástica de máquinas para aumentar a escala e a partir disso a gente poder ter a instalação de fábricas aqui no Brasil, no sentido inclusive de fortalecer a indústria nacional, pensando nessa perspectiva da geração de empregos, mas sobretudo atendendo a uma demanda histórica, que até então nenhum nenhum setor da indústria de máquinas no Brasil se preocupou em atender a agricultura familiar. Nós continuamos sem ter as condições de ter máquinas que respondam a essas necessidades e possam avançar no fortalecimento da agricultura familiar, na produção de alimento dentro de uma matriz produtiva, que tem uma relação equilibrada com o meio ambiente e que possa fortalecer a agroecologia.
Qual o papel do poder público nesse processo?
Não temos dúvida de que é essencial que o governo brasileiro também sinalize para essa prioridade e para as condições necessárias para que as empresas chinesas possam vir para cá após esse processo de testagem, construindo as condições para a instalação dessas fábricas e que efetivamente a partir do crédito que o governo brasileiro garante para o fomento da agricultura familiar nós possamos ter no mercado máquinas brasileiras, dentro dessa parceria com a China, e possamos seguir produzindo alimento saudável de forma chegar na mesa do povo brasileiro e a gente enfrentar problemas como a fome, que ainda é uma realidade de muitos brasileiros e brasileiras no nosso país.
Já existe algum diálogo iniciado para a vinda de alguma fábrica chinesa para o Brasil?
O MST tem feito articulações, mas nós não temos dúvida de que é central o papel do do governo. Para isso nós temos feito tratativas com o governo federal. Em recente agenda como presidente Lula, o MST apresentou as demandas para esse processo, inclusive a necessidade da gente ter uma política nacional de mecanização para a agricultura familiar, que leva em consideração a instalação de fábricas, mas também um conjunto de outras medidas, como acesso ao crédito que garanta a aquisição dessas máquinas também pelos agricultores e agricultoras familiares. Também temos aberto diálogo com governos estaduais do Nordeste, mas também de outras regiões do país. 50% da agricultura familiar do nosso país está concentrada no Nordeste, então tem uma demanda real, uma necessidade real. Entendemos que toda e qualquer articulação que venha a fortalecer esse diálogo é importante.
*Esta matéria é patrocinada pela Finep.