1. Explicando o caso
Uma juíza de Pernambuco decretou a prisão de Gusttavo Lima e da influencer Deolane – a notícia está em todos os jornais e sites. Deolane chegou a ser recolhida por alguns dias. Já Gusttavo Lima obteve habeas corpus antes de ser preso.
Gusttavo é suspeito de ter ligação com pessoas investigadas na operação “integration”, da Polícia Civil de Pernambuco, que apura um esquema de lavagem de dinheiro de jogos de azar pela internet (bets). Ele estava nos Estados Unidos em viagem com sua família, quando recebeu a notícia da concessão da ordem.
Na mesma decisão, o desembargador derrubou a decisão que suspendeu o passaporte e o porte de arma do cantor. Para o desembargador, a decretação da prisão de Nivaldo Batista Lima, nome do cantor, foi justificada com base em ilações (deduções).
2. O desdobramento da concessão de habeas corpus — liminarmente
Houve um frisson sobre a (quase) prisão de Gusttavo Lima. Ainda há juízes no Brasil, disseram alguns causídicos. OK. Correta a decisão do HC concedido pelo desembargador pernambucano.
Então, qual é o problema? Causa finita, certo? Sim e não. O busílis é que, em cem pedidos de habeas corpus apreciados desde 2023 até a semana em que houve a concessão da ordem a Gusttavo Lima, o desembargador pernambucano ou não conheceu ou não deferiu (nenhuma) liminar. No mérito, os HC relatados pelo desembargador, com raras exceções, são negados à unanimidade. Portanto, a comemoração pela concessão do habeas corpus em favor de Gusttavo e Deolane fica, digamos assim, ofuscada pelas notícias que darei na sequência. Já explicarei.
3. Uma questão de isonomia ou “isonomia – eu quero uma para aplicar no Direito”
Lembro-me que fui pioneiro, como procurador de Justiça, em lançar uma tese pela qual se deveria aplicar, por isonomia, a benesse concedida aos sonegadores de tributos – extinção da punibilidade pelo pagamento do prejuízo – aos acusados de furto e estelionato. Há dezenas de acórdãos nesse sentido, da lavra da 5ª. Câmara criminal do TJ-RS em que eu atuava. Um dos acórdãos teve a seguinte ementa:
“Lição de Lenio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinquentes tributários (Lei 9.249/95, artigo 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso provido para absolver o apelante. (TARS. 2ª Câmara Criminal. Apelação criminal nº 297.019.937. Relator: Amilton Bueno de Carvalho. Data do julgamento: 25 de Setembro de 1997)”.
Portanto, minha crítica não era (e não é) contra a concessão de favor legis aos sonegadores de tributos (como não sou contra, por óbvio, à concessão de habeas corpus a Gusttavo Lima); minha crítica era — e continua sendo —, sim, a não aplicação da isonomia. É disso que se trata.
A primeira vez em que defendi a tese (é uma de tantas) foi no caso de uma bicicleta furtada e que foi recuperada em seguida. Zero de prejuízo. E a tese foi aplicada, a partir de meu parecer. Isso em 1990, portanto, há 35 anos. Lutei muito por essa isonomia de tratamento. Coerência e integridade — que depois consegui incluir no CPC de 2015, artigo 926.
Portanto, insisto, não está errada a decisão que concedeu o HC em favor de Gusttavo Lima. Porém, talvez não tão corretas estejam muitas das decisões do desembargador (ou do tribunal) que não concederam liminar (e/ou o habeas corpus no mérito) a acusados presos cautelarmente no estado de Pernambuco (sim, sei que no restante do Brasil isso se repete).
Veja-se que a mesma Câmara que concedeu habeas corpus — liminar e monocraticamente — a Gusttavo Lima e para a influencer Deolane, negou o remédio heroico em um caso em que o acusado está preso desde 25/6/2019 – encarcerado há cinco anos (aqui, para além dos cem casos de não concessão de liminar, foram examinados apenas os últimos 40 acórdãos da Câmara em sede de habeas corpus) [1]. Mesmo se fosse crime de júri, ainda assim há um problema, certo?
*Lenio Streck/Conjur