Estupro foi “arma de guerra” pró EUA e Israel para matar maias na Guatemala

Estupro foi “arma de guerra” pró EUA e Israel para matar maias na Guatemala

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“Silenciar a violência sexual cometida contra as mulheres, e massivamente contra as maias durante o conflito armado, é fazer que não exista. É fazê-la desaparecer da memória coletiva”

“No âmbito da política de contra-insurgência, as mulheres, majoritariamente maias, foram vítimas de estupro e outras formas de violência sexual por parte de agentes do Estado na Guatemala, de maneira generalizada e sistemática. O exército utilizou a violência sexual como poderosa arma de guerra”.

De forma comovente e contundente, o livro “Tecidos que levam a alma – Memória das mulheres maias sobreviventes da violação sexual durante o conflito armado” (F&G Editores, 2009, 472 páginashttps://www.actorasdecambio.org.gt/wp-content/uploads/2020/11/Tejidos-que-lleva-el-alma.pdf, revela como as ditaduras armadas, estimuladas e patrocinadas pelos EUA e Israel entre 1960 e 1996 foram responsáveis por “genocídio e feminicídio” no país centro-americano.

A obra aponta que como se não bastassem os mais de 200 mil guatemaltecos mortos e 45 mil desaparecidos, o número de violações sexuais de mulheres de todas as idades – incluindo crianças e adolescentes – “pode chegar a ser maior que o das desaparições forçadas”.

Além disso, assevera a pesquisa transformada em obra pela Equipe de Estudos Comunitários e Ação Psicossocial (Ecap) e da União Nacional de Mulheres Guatemaltecas (Unamg) com senhoras que se mantiveram no anonimato ao longo de 25 anos, é preciso considerar “que o estupro se deu no marco de todas as outras violações aos direitos humanos femininos”. “Foram massacres, execuções arbitrárias, privação de liberdade e torturas, sem falar dos abusos sexuais que ocorreram no marco do deslocamento forçado que coube em sua maioria às mulheres”. Desta forma, descrevem com riqueza de detalhes a enorme resistência para que os militares e suas Patrulhas de “Autodefesa” Civil não rompessem o tecido social, a unidade e a diversidade das culturas.

Como assinalam aquelas que se uniram e transitaram “de vítimas a autoras, a protagonistas”, “a pesquisa nos conta sobre processos de dor e cura que passam pelo corpo, que partem de histórias individuais para se integrarem em construções coletivas de potências femininas descobertas. Como primeira forma de encontrar a reparação nos propõe a visibilidade das memórias emocionais guardadas a sete chaves”. “Nunca antes a violência sexual cometida contra as mulheres durante a guerra foi escrita no nosso país com este nível de profundidade”, assinalam com orgulho.

Para o coletivo da Ecap e da Unamg, responsável pela publicação, a violência sexual foi usada “para destruir a continuidade biológica, sexual e cultural do povo maia através do corpo das mulheres” e tinha por objetivo “a subordinação das mesmas através do terror”.

A violência sexual durante a guerra na Guatemala foi primeiramente dirigida contra as mulheres maias: 88,7% das vítimas de estupro identificadas pela Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH) eram desta etnia; 10,3% eram mestiças e 1% pertencia a outros grupos. “Estas cifras evidenciam o caráter racista da guerra, onde a violência sexual jogou um papel não somente para humilhar, mas para destruir o povo maia”, destacam as autoras.

Em segundo lugar, as agressões sexuais impediram a reprodução do grupo já que, além dos efeitos evidentes, como lesões permanentes dos órgãos reprodutores femininos, especialmente entre as crianças e adolescentes, deixou o profundo trauma psicológico e o estigma social como obstáculos para a reprodução do grupo. Apesar da mortandade, os maias continuam sendo mais de 40% da população.

A grande maioria dos casos de estupro era o presságio da morte. A CEH apurou que 31% das vítimas de execução extrajudicial haviam sido antes estupradas, torturadas ou ameaçadas. Ainda assim, 35% das vítimas de violação sexual foram posteriormente executadas.

Diante de um cenário tão macabro e de continuarem convivendo nas suas comunidades com assassinos e torturadores – seus e de seus familiares -, é justificável terem recorrido ao pseudônimo, pois a sombra do horror persistia.

Identificadas como base de apoio

Identificadas como base de apoio da guerrilha, “que tratava de lutar pelos direitos para que todos fossem iguais”, as mulheres foram atacadas por não se curvarem à submissão, mesmo após o assassinato dos seus pais, maridos e filhos. A ordem da violação sexual veio de cima, minuciosamente planejada, respondendo a uma “cadeia de mandos”, numa “estratégia pensada e desenhada para ganhar a guerra”. “Quem executava a prática habitual e sistemática da tortura, do estupro e do massacre era cuidadosamente treinado, com informações precisas”, reforça o Relatório do Projeto Interdiocesano “Recuperação da Memória Histórica”.

Como revelou posteriormente a renomada jornalista estadunidense Mary Jo Mcconahay, “Israel não deve ser considerada um mero representante dos EUA durante as investidas genocidas contra o território indígena ixil”, pois o Estado sionista “era uma máquina de guerra por si só, em busca de mercados de armas e ansioso por aliados”. Vencedora do Lowell Thomas Travel Journalist of the Year – prêmio equivalente ao Pulitzer no gênero -, Mary Jo denuncia que “Tel Aviv apoiou o brutal exército guatemalteco na sua época e posteriormente”. “Israel começou a vender armas para a Guatemala em 1974: veículos blindados, equipamento de comunicação militar, canhões leves, metralhadoras Uzis e milhares de rifles de assalto Galil, que se tornaram a arma padrão das tropas guatemaltecas”, destacou. Conforme comprovou em suas reportagens, “Israel construiu uma fábrica na Guatemala na década de 80 para produzir Galils e balas para acompanhá-los”. E mais, “Tel Aviv fez entregas de sua exclusiva aeronave de decolagem e pouso curtos, o Aravá, vários dos quais foram posteriormente equipados com cápsulas de canhão”.

Sendo assim, para fantoches que haviam se vendido aos governos dos EUA e Israel era completamente inadmissível o caminho da soberania, do desenvolvimento e da justiça social. Seu objetivo, afiança o livro, era abrir espaço à “intervenção estrangeira” a qualquer custo, a mesma que abortou o “projeto nacional de transformação social, assim como de combate à discriminação e ao racismo contra os povos indígenas” implementado pelo presidente Jacobo Árbenz (1951-1954), deposto por um golpe da CIA e da United Fruit. Afinal, recorda o livro, foi Árbenz quem pôs em prática “uma ampla reforma agrária, beneficiando a meio milhão de camponeses, majoritariamente indígenas”, numa população de 3,5 milhões de habitantes.

Com os espaços democráticos fechados de forma extremamente violenta pelos serviçais de Washington, recordam as autoras, “dirigentes das organizações sindicais, estudantis e camponesas, assim como dos partidos políticos de esquerda surgidos durante o governo revolucionário foram presos, obrigados a partir ao exílio ou assassinados”. “A intervenção estrangeira jogou um papel de grande importância no desencadeamento do conflito armado”, da mesma forma que “o total silêncio imposto aos canais de expressão, de participação social e política, fazendo com que diversos grupos chegassem à conclusão de que a única alternativa para restaurar a democracia que lhes haviam arrebatado era a luta armada”.

Sadismo e perversidade

O grau de sadismo e perversidade de militares e paramilitares foi exemplificado nos abusos sexuais massivos denunciados nos casos de massacres ou “capturas” de mulheres, apurou o Escritório de Direitos Humanos do Arcebispado da Guatemala (ODHAG). “Enquanto cinco soldados matavam, cinco se dedicavam a descansar e, como parte do descanso, tinham turnos para estuprar jovens de 15 a 17 anos. Ao matá-las, cruzavam estacas na genitália”.

No dia 19 de julho de 1982, numa fazenda em Tzalamabaj, município de Chiché, uma família foi capturada ao tentar fugir. Os soldados prenderam e estupraram a mãe e a filha de nove anos. Depois, atearam fogo na casa. Para contar a história, com todos os traumas, ambas conseguiram sobreviver.

“Além de serem violadas coletivamente por um ou vários soldados, diante das comunidades ou dos seus familiares, os corpos das mulheres eram mutilados. Se introduzia objetos na vagina e no ânus como madeiras acesas, facas ou garrafas quebradas”, descrevem as pesquisadoras. As mulheres grávidas tinham o feto arrancado ou morto a chutes dentro do próprio ventre.

As marcas desta invasão se converteram em medo, mas também motivo de vergonha coletiva, no êxodo de mulheres e na dispersão de comunidades inteiras, além de provocarem abortos ou filicídios.

Quando o tema era mutilação, o horror não tinha limites e a depravação seguia além da morte, com os corpos femininos empalados e dilacerados em locais públicos.

Estuprro coletivo

“O oficial tem os seus grupinhos de assassinos e lhes diz como têm que matar. Hoje vão degolar ou erguer com arames, vão estuprar todas as mulheres. E por uma só passavam 20 ou 30 soldados…”, explica o estudo da Comissão para o Esclarecimento Histórico, demonstrando como ocorreram inúmeras atrocidades.

Tamanho nível de barbárie perpetrado contra as mulheres somente pôde se estabelecer em um sistema que as desumaniza, “as coisifica e as transforma em objeto de prazer”. Por isso, “muitas foram obrigadas a uniões conjugais com militares, com comissários ou patrulheiros que atuaram com total impunidade”.

O plano dos genocidas foi desenhado a nível nacional, e minuciosa e sistematicamente executado em todo o país, seja nos quartéis, casas, escolas e até mesmo dentro das igrejas. Sua dimensão foi assombrosa. Somente em outubro de 1981, a Força Tarefa de Iximché ceifou 35 mil vidas.

Barbaridades

Na zona sul do Departamento de Chichicastenango, uma sobrevivente recordou o massacre presenciado: “Na aldeia morreram 91 homens, 41 mulheres e 47 crianças. Há soldados que os enforcaram. Minha irmã estava grávida e lhe abriram, tiraram seu bebê e o amarraram. E puseram fogo e os colocaram para assar. E assados os comeram, ficando manchados com o sangue dos cadáveres”.

Entre 2 de junho e 25 de agosto de 1982, em um período de 83 dias, assegura a CEH, foram 15 massacres. “Morreram 2.636 pessoas entre crianças, mulheres e homens. Sete destes massacres foram totais, com violações sexuais a todas as mulheres e a execução de todas as crianças. Ocorreram desaparições de pessoas e foram destruídas 15 aldeias, incluindo os cultivos e bens indispensáveis”.

Crianças e mulheres mortas

Em Petanac e Sebep, o mesmo receituário nazifascista. “Mulheres fechadas com as crianças e os velhos em outra casa, e jogaram uma bomba. Corpos queimados, enterrados como se fossem animais, prontos para cozinhar carne assada. Crianças massacradas e bem picadas com facão. Mulheres mortas como Cristo”.

Outra das sobreviventes recorda quando os invasores executaram seu esposo e seu filho: “enquanto uns realizavam a matança, os outros me estupravam”.

Com uma brutalidade nunca vista, muitas das lideranças sequestradas e torturadas foram expostas e executadas diante da comunidade para infundir terror e alertar sobre as consequências de eventuais “colaborações” com os rebeldes.

Treinados pelos EUA na Doutrina de Segurança Nacional para varrer com o “inimigo interno”, os soldados operavam a partir dos latifúndios onde haviam instalado os “destacamentos”, centros de tortura e execução. As mulheres explicaram com muita dor “como o exército obrigava os seus maridos a comer escrementos de animais, chorando de impotência frente às humilhações e desumanizações extremas”. Várias das esposas foram estupradas por perguntar qual o “delito” que o marido havia cometido. Por esta razão, explica, “no mesmo local, fui violentada por cinco soldados”.

Nas palavras de uma sobrevivente de Chimaltenango: “Não houve respeito pela humanidade, pela vida. Roubaram, mataram, a minha mãe, lhe arrancaram os seios e a dependuraram. Estupraram e mataram as mulheres e lhes enfiavam estacas”.

Dona Carolina contou que o exército assassinou o pai com quem tinha uma relação muito forte desde pequena. Logo, roubaram sua casa e obrigaram seu marido, Marcos, e os dois filhos a fugir. Durante a fuga executaram o filho de dois anos diante dos seus olhos sem que nem pudesse enterrá-lo. Capturaram o marido e o desapareceram. Quando ela voltou para casa, vários soldados a estupraram frente ao filho de um ano. Com Vermelho.

No município de Nentón, na finca (propriedade) de San Francisco, eliminaram quase toda comunidade, incluindo crianças e anciãos. “As mulheres que tentaram fugir foram estupradas e queimadas vivas dentro de suas casas”.

Os informes “Guatemala: Nunca Mais”, do Projeto de Recuperação da Memória Histórica (Rehmi) e “Memória do Silêncio”, da Comissão de Esclarecimento Histórico, se propuseram a tarefa de esclarecer a verdade sobre as violações aos direitos humanos cometidas durante o conflito armado. “Estes informes deram uma contribuição inestimável para reconstruir o passado, como base para construir o presente e pensar o futuro”, reconhecem as autoras, apontando, no entanto, para suas limitações, pois o estupro não foi considerado como uma violação da mesma gravidade que a tortura, o desaparecimento, a execução e os massacres.

Infelizmente, tanto Fernando Romeo Lucas (2009), quanto Efraín Ríos Montt (2018) morreram antes de escutar a sentença condenatória dos crimes cometidos enquanto comandantes gerais do Exército. A reflexão sobre estas denúncias deve servir para que a Guatemala se reencontre, neste momento em que seu Tribunal de Alto Risco está julgando por “genocídio e crimes de lesa-humanidade” o general retirado Manuel Benedicto Lucas García, Chefe do Estado Maior do Exército de 1981 a 1982.

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