Casal decidiu contar o drama com o vício da mulher em apostas para alertar outras vítimas.
(Os nomes dos entrevistados serão omitidos nessa matéria)
Até pouco mais de dois anos atrás, a vida financeira do casal formado pelo policial militar R. F. , de 30 anos, e a mulher, J. M., de 34 anos, era equilibrada. Naquele período ela teve a primeira experiência com aplicativo de bets. Nas jogadas iniciais, ganhou dinheiro. Mas, como sempre acontece, rapidamente as perdas passaram a ser maiores que os ganhos.
J. M. acabou se viciando nesse tipo de aposta. Com isso, as contas da família, que reside em cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, acabaram saindo dos trilhos.
R.F. recorda o momento em que a esposa admitiu o vício. “Ela desmoronou. Chorando, disse que perdeu todo o dinheiro em questão de poucos dias, que o pagamento já tinha sido depositado no jogo, que havia estourado o limite do cartão de crédito”, conta. “Que sensação de angústia senti na hora… porém, vi a vulnerabilidade dela, que tinha tomado um prejuízo de quase R$ 20 mil reais, e a acolhi. Ela prometeu que não se envolveria mais com nenhum jogo”.
De lá para cá a vida pareceu voltar aos eixos e o casal planejou a gravidez da segunda filha. A menina nasceu no dia 21 de agosto deste ano.
R.F. descobriu recentemente, no entanto, que ao contrário do que tinha prometido, a esposa continuava dominada pelo vício em bets. Isso causou brigas e desestabilizou a relação.
“Um dia levantei cedo, com a minha sogra gritando desesperadamente e me pedindo ajuda: minha esposa havia surtado, não queria amamentar a nossa bebê recém-nascida, estava procurando a minha arma para tirar a própria vida, procurava facas, pegou uma sacola de remédios e correu para dentro do carro para se intoxicar”, lembra. “Caí na real, as coisas estavam indo muito mal”.
A gravidade da situação ficou mais clara quando ele soube o tamanho da dívida da mulher (ela contabiliza cerca de R$ 650 mil perdidos em apostas). “Meu Deus, naquele momento quem queria tirar a própria vida era eu”, diz.
A esposa de R.F. atualmente está em tratamento psicológico e a mulher decidiu contar em detalhes ao ICL Notícias a experiência traumatizante com as bets. A intenção é alertar outras pessoas e evitar que se viciem.
A seguir, os principais trechos do depoimento de J.M. sobre as drásticas mudanças que o vício em aplicativos de apostas causou na sua vida e na de sua família:
No início, o sonho
“Comecei a jogar nessas plataformas através de um amigo do meu serviço que já jogava. Na época era a Blaze, ele me apresentou e falou que estava ganhando dinheiro, que era muito fácil jogar. Me mostrava vídeo de gente que estava ganhando dinheiro e até uma planilha que era chamada planilha de gerenciamento de banca. A gente depositava um dinheiro ali na plataforma e ia jogando. Eu fiquei empolgada com esse jogo, cheguei aqui em casa contei para o meu esposo, falei que esse amigo estava ganhando dinheiro, mostrei pra ele, abri a plataforma aqui e depositei parte do meu salário.
Comecei a jogar nessa plataforma e cheguei a ganhar até um dinheiro, sabe? Eu me empolguei e pensei comigo: “É agora que eu mudo de vida. Vou mudar a vida da minha família, não vou precisar trabalhar mais. Vou mudar a vida da minha mãe, porque minha mãe era dona de casa. É separada e passava uns perrengues, então eu achava que ia mudar a vida da minha mãe com esse tipo de jogo, né?”.
Ganha e perde
“E aí comecei a jogar, comecei a empolgar, porque eu ganhava dinheiro e perdia. Ganhava num dia, ganhava no outro dia, no terceiro dia ganhava, no quarto dia eu já perdia. E aí eu fui depositando o meu salário, porque eu não aceitava que eu tinha perdido, eu queria recuperar. Depositava o meu salário, perdia o meu salário todo, aí pegava o empréstimo aqui no banco, colocava dentro da plataforma e ia jogando. Novamente, ganhava um dinheiro e perdia. Aí pegava o empréstimo em outro banco, jogava lá na plataforma o empréstimo. Perdi o dinheiro todo.
E nisso bate um desespero porque eu tinha prometido pagar viagem para o meu esposo, pagar hospedagem, gasolina. Mas eu tinha perdido o dinheiro todo. Como eu ia falar isso pra ele? Na véspera da viagem ele me questionou: cadê esse dinheiro que eu tinha ganhado? E eu já não tinha mais dinheiro nenhum”.
Começa o descontrole
“Já tinha estourado meu limite de cartão de crédito. Já tinha pegado empréstimo com dois bancos. Já estava com o nome sujo. E aí foi aquele desespero, ele ficou nervoso. Me fez prometer que eu nunca mais ia jogar nessa plataforma. Eu fiquei desesperada, comecei a chorar pensando no que eu tinha feito, pensando no dinheiro que eu tinha perdido, porque foi muito dinheiro. Juntando os dois bancos acho que que foram mais de R$ 15 mil. Prometi pra ele que eu não ia jogar. Só que passou um tempo e eu fiquei com isso na cabeça, que eu tinha perdido esse dinheiro. Que eu tinha que recuperar esse dinheiro, não podia ficar assim. E aí eu liguei pra o meu pai, peguei um empréstimo com ele e joguei lá na plataforma. Perdi todo o dinheiro que o meu pai me emprestou.
Porque eu até ganhava um dinheiro, só que eu já não estava conseguindo parar de jogar. Eu ganhava, me empolgava e queria jogar mais e mais. Queria ganhar mais e mais. Não me contentava com o equivalente a R$ 500. Eu queria ganhar R$ 1 mil, R$ 2 mil, R$ 3 mil no mesmo dia. Então, eu não tinha o controle de parar. E aí perdi o dinheiro todo do meu pai”.
Dinheiro da mãe
“Minha mãe estava recebendo um dinheiro de herança. E aí eu liguei pra ela e pedi dinheiro emprestado. Contei que nessa plataforma dava pra ganhar dinheiro e ela também acreditou. E aí me emprestou. Perdi o dinheiro da minha mãe todo. Na época, foram uns R$ 25 mil que ela me emprestou. Não conseguia contar pra ela que eu tinha perdido esse dinheiro. Não conseguia contar. Porque minha mãe sempre passou muita dificuldade, porque ela se separou, nunca trabalhou. E o dinheiro que ela recebeu de herança eu perdi.
O empréstimo do meu pai foi em torno de uns R$ 35 mil. Na época eu falei com ele que estava comprando um lote, se ele podia me ajudar que eu ia pagar, óbvio. Eu não paguei. Não consegui pagar porque perdi dinheiro todo. Inclusive tem um ano mais ou menos que a gente não conversa por causa dessa dívida que eu tenho com ele.
Com a minha mãe, o primeiro empréstimo foi de R$ 25 mil. Porém ao todo minha mãe me passou mais de R$ 350 mil. Literalmente perdeu a herança dela toda toda porque eu falava que estava devendo a agiota e no desespero ela me passava. Todo dia eu falava: ‘Ó, mãe, o agiota pediu mais, o agiota está me me ameaçando, está me fazendo chantagem, está me extorquindo’. Ela foi passando o dinheiro todo pra mim”.
Ouça um trecho do depoimento ao ICL Notícias:
Coração apertado
“Em relação ao meu sentimento com o meu esposo, eu ficava com o coração apertado, ficava com o remorso. Mas eu não podia parar de jogar, porque queria recuperar o dinheiro da minha mãe que eu tinha perdido, recuperar o dinheiro do meu pai, pagar aos meus tios.
Então eu tinha que jogar escondido dele, mas ficava aqui com o coração apertado com remorso. Tanto que quando ele ia trabalhar eu ficava no meu quarto aqui, chorando a noite toda. Eu chegava do serviço e só queria ficar no meu quarto chorando, falando ‘meu Deus, o que que eu estou fazendo? Mas eu preciso jogar porque eu preciso recuperar’.
O meu sentimento era esse: não posso fazer isso com as pessoas, eu não posso sair devendo às pessoas. Então, ao mesmo tempo era o remorso que me corroía, que me corrói até hoje, porque eu não paro de pensar nisso até hoje. A médica até me passou um remédio pra eu tomar, um antidepressivo, porque eu estou amamentando e meu leite começou a secar”.
Empréstimo da amiga
“Você se torna uma pessoa viciada ali no jogo. Além de pegar dinheiro com outros familiares, peguei também com amigas minhas. E aí foi que virou pesadelo: a amiga minha chegou a pegar empréstimo porque achava que eu estava devendo a agiota. Com medo de eles fazerem alguma coisa comigo, pegou um empréstimo no banco para mim e me passou. Eu perdi totalmente o controle. E aí virou essa bola de neve. Quando eu vi eu já tinha pegado emprestado com mais de dez pessoas dinheiro. E eram valores altos.
Cheguei a inventar muita história, muita coisa por causa desse jogo. Porque além do vício de jogo você fica viciada em mentir para as pessoas também. Isso me levou a ficar viciada em mentir para conseguir pegar dinheiro emprestado. Mas a minha intenção não era dar golpe em ninguém, era pegar dinheiro emprestado, levantar um dinheiro dentro da plataforma para pagar a outras pessoas. Só que não conseguia, eu perdia. Tinha um dia que a plataforma me tirava tudo de uma vez. O que eu consegui juntar em uma semana, no outro dia a plataforma me tirava o dinheiro todo. E aí batia aquele desespero. Eu não sabia o que fazer. Foi assim, por exemplo, que perdi todo dinheiro da minha mãe dentro das plataformas. Hoje ela vive aqui comigo e com meu esposo. Sem nenhum dinheiro, sem dinheiro pra comprar remédio, os remédios dela”.
“Pensei em tirar minha vida”
“Eu pensei até em tirar minha vida. Eu cheguei a pegar duas vezes a arma do meu esposo e colocar na minha cabeça, só que eu já estava grávida. E aí eu não conseguia. Não conseguia. Porque eu pensava na minha filha, na minha outra filha também, que precisa de mim. E aí depois que eu ganhei minha segunda filha, minha bebezinha, eu surtei aqui em casa.
Uma vez, desesperada, peguei o celular do meu esposo e ele tinha uma economia lá dentro do banco dele, e transferi tudo para a minha conta para recuperar de novo o dinheiro da minha amiga. Ela financiou a casa dela e precisava ter o nome limpo, ter o limite dela do cheque especial. Foi aí que estourou a bomba aqui em casa, porque eu transferi o dinheiro do meu esposo para a minha conta para tentar levantar um dinheiro, pra pagar a minha amiga. Só que eu perdi tudo”.
*Chico Alves/ICl