Por que a acusação de terrorismo, popularizada após o 11 de setembro e repetida contra o Hamas, não é aplicada em relação aos ataques de Israel no Líbano?
A pergunta parece nos levar ao menos duas décadas atrás, quando muitos dos leitores formaram sua percepção sobre o conceito de terrorismo a partir da reação global comandada pelos EUA, com seus aliados europeus no Conselho de Segurança da ONU, à derrubada dos edifícios gêmeos em Nova York, atribuídas a um grupamento criado, treinado e financiado pelos EUA décadas antes no Oriente Médio.
Naquele momento histórico, desde o futebol ao cinema, das conversas de bar aos desenhos animados, o estereótipo do terrorismo assolando o “mundo civilizado” era o fio condutor da convivência social, tudo refletia essa percepção de um mal a ser combatido como devir existencial, sustentado por imagens de um horror desumano que, por sua vez, comunicava: se trata do chamado à batalha contra inumanos, desprovidos daquilo que definiria a humanidade. Logo, a guerra deve ser total, com todas as forças e sem qualquer oposição.
Ao ligar a televisão, em qualquer canal, em qualquer horário, dos programas de amenidades matutinos aos noticiários, passando pelas fofocas e filmes de sessão da tarde, até os talk-shows noturnos, todos faziam questão de exibir histórias de famílias devastadas, atos heroicos de bombeiros, mobilizações cívicas de voluntários, preparativos bélicos militares. Conhecemos nos detalhes de terceira geração cada vítima, vimos seus amigos, namorados, parentes, filhos, colegas de trabalho, animais de estimação. Cada vítima extremamente humana de terror.
Com tudo isso formamos nosso entendimento de terrorismo. O mal maior, a bestialidade insuportável até entre os brutos. Satíricos complementavam com bazófia a caricatura do terrorista. A mote de dar uma “outra” visão sobre o demônio, criavam personagens com roupas e costumes típicos, vivendo vidas em cavernas e tendas onde confundiam coxinha de galinha com granada, jogavam boliche com bombas com pavio aceso, etc. Não se tratava assim de outra visão, mas da mesma, sob a permissão do ridículo com a dor ocidental. No fundo, um complemento útil e necessário, vejo hoje, à delimitação da figura do terrorista, o agente do terrorismo.
É muito fácil para os canais de televisão, seus jornalistas e grupos de mídia impressa e de internet repetirem hoje que a ação militar da resistência palestina foi um ato terrorista. Estamos há um ano repetindo sem qualquer contraponto que se trata de terrorismo matar centenas de civis num único dia. Contudo, a ação que matou cinco centenas de civis no Líbano recentemente, ou seja, um acontecimento idêntico, dessa vez promovido por Israel, não teve uma única citação em praticamente lugar nenhum com a mesma palavra.
Por que o assassinato de centenas de pessoas num único dia, em acontecimentos sem causalidade entre si, são tratados um como terrorismo inquestionável e outro sequer tem aventado o caráter terrorista?
Diante desse paradoxo, qualquer leitor bem instruído tentará dar um passo atrás e procurar além da semelhança dos fatos uma abstração sobre o conceito de terrorismo. Respeito o exercício e farei agora.
Segundo a ONU, conforme a resolução 48/60 de 1994 da sua Assembleia Geral, terrorismo são “atos criminosos planejados ou calculados para provocar estado de terror no público em geral, num grupo de pessoas ou em particulares por motivos políticos”.
Por essa definição não é necessário sequer haver mortes para ser enquadrado como ato terrorista. Mas os atos citados na definição geralmente são atos homicidas, levando um grupo maior a temer por suas vidas. Assim, as mortes de 7/10/23 e as de 23/9/24 encaixam-se ajustadamente no largo conceito.
A abstração jurídico-política nos deixa, assim, no mesmo lugar. Como atos igualmente terroristas à luz da definição da ONU são tomados de forma tão diferente por quase a unanimidade da mídia, sem que essa tenha qualquer acordo obscuro de manipulação?
A resposta, a meu ver, não é a existência de qualquer sala de comando noticioso entre a AP, Reuters, AFP, EF, etc. Tampouco um órgão secreto em Washington com censores que definem os rótulos e, a partir deles, as notícias. É algo bem mais simples, tangível e à vista de todos.
No acontecido do ano de 2023 não bastou o pronto reconhecimento da diplomacia brasileira do caráter terrorista da ação; foi cobrado em uníssono pela mídia liberal, e pelos que se dizem de esquerda que paradoxalmente se instruem por essa mídia, que Lula definisse também os perpetradores como essencialmente terroristas. Há uma exigência de pronto pela caricatura do terrorista como introjetada socialmente: o esteriótipo do islâmico. Da mesma forma, no ato terrorista recente, o mecanismo cognitivo trabalha no caminho inverso: se não partiu do esteriótipo do terrorista, não foi terrorismo.
*Samuel Braun/Opera Mundi