Farmacêutica de opioides repete no Brasil tática que matou milhares nos EUA

Farmacêutica de opioides repete no Brasil tática que matou milhares nos EUA

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Empresa da crise de opioides contrata médicos para ensinar prescrição no Brasil; um deles fez projeto de lei que difunde uso das substâncias.

Em fevereiro de 2023, numa sala de convenções do resort de luxo Villa Rossa, funcionários da gigante farmacêutica Mundipharma ergueram suas taças de espumante e brindaram aos bons resultados de vendas no ano anterior e aos 10 anos de atividade do laboratório no Brasil. A celebração, que atravessou quatro dias no resort a 76 quilômetros de São Paulo, teve como ponto alto uma festa de carnaval com todos de abadá, e entrega de medalhas pelo empenho nas vendas de medicamentos à base de opioides, substâncias que, bem longe dali, foram protagonistas na morte de mais de meio milhão de americanos. Uma pista do passado da empresa estava nas paredes do salão, decoradas com cartazes da Mundipharma exibindo o slogan “Construindo um futuro com precisão” — uma referência à autocrítica que a empresa fez, de não terem sido precisos ao explicitar os riscos do uso da oxicodona, princípio ativo de seu principal produto, e assim terem levado a uma das mais mortais crises de saúde pública dos Estados Unidos.

A investigação jornalística Mundo da Dor, uma colaboração do Metrópoles e mais 10 veículos, entre eles o site americano The Examination e a revista alemã Der Spiegel, revela, porém, que a expiação do slogan talvez esteja mais para uma peça de marketing do que para uma mudança real de conduta da empresa.

Após cinco meses de apuração, a investigação mostrou que, tal qual nos Estados Unidos, a Mundipharma no Brasil repete táticas de venda usadas por lá na década de 1990 e no início dos anos 2000. O laboratório segue afirmando que a oxicodona de liberação prolongada não causa dependência, embora a ciência diga o contrário. A empresa também minimiza o eventual risco de uma crise semelhante à americana acontecer no Brasil, o que é contestado por especialistas. A Mundipharma financia, assim como fez nos Estados Unidos, eventos sobre o uso de opioides — em que médicos promovem essas substâncias a outros médicos —, sob a justificativa de que visam à formação e educação para o uso dos medicamentos. Nessas aulas, a farmacêutica detém o controle absoluto sobre o que os médicos falam das substâncias e paga todas as despesas dos profissionais convidados para participar dos eventos.

A Mundipharma é conhecida mundialmente por distribuir os remédios da Purdue Pharma, empresa americana que assumiu a culpa pela morte de mais de 500 mil pessoas nos Estados Unidos por overdose causada por opioides. Fundada pelos irmãos e médicos Arthur, Mortimer e Raymond Sackler, a Purdue Pharma é responsável por desenvolver o OxyContin, remédio composto pela substância oxicodona, que tem um efeito 150% maior que a morfina e possui alto risco de dependência. O marketing e a propagação do OxyContin para o tratamento de dor no fim da década de 1990 e início dos anos 2000 levaram aproximadamente 90 mil pessoas à morte só naqueles 10 anos, por overdose de opioides, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano.

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A Mundipharma desembarcou no Brasil em 2013, um ano antes de a Purdue começar a ser alvo de processos judiciais coletivos nos Estados Unidos pelas consequências do uso do OxyContin. A entrada do OxyContin no mercado de tratamento de dor no país era o principal objetivo da farmacêutica. Em março daquele ano, a empresa deu entrada no processo de regulamentação do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e só conseguiu a aprovação três anos depois, em julho de 2016.

Remédios à base de oxicodona começaram a ser comercializados no Brasil em 2001 pelo laboratório Zodiac. Entretanto, os primeiros dados que a Anvisa tem sobre a venda de oxicodona são de 2014, quando foram comercializadas 149,8 mil caixas. Em 2016, ano em que o OxyContin, da Mundipharma, entrou para o mercado brasileiro, o número saltou para 169,5 mil caixas vendidas, um aumento de 13,5%. O crescimento aconteceu até 2017. No mesmo período, a Mundipharma começou a vender outro opioide no Brasil: o Restiva, um adesivo que tem como princípio ativo a buprenorfina e é considerado, atualmente, o principal produto da farmacêutica no Brasil.

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O medicamento mais recente do laboratório a ser regulamentado pela Anvisa, em 2018, foi o Targin, que representou um retorno da empresa à promoção da oxicodona, princípio ativo em que foi pioneira. Ao contrário do OxyContin, o Targin não tem apenas a oxicodona. O remédio é associado a outra substância, a naloxona, que funciona como um antídoto para algumas reações adversas do opioide. Sua bula explica que a naloxona é usada para reduzir os efeitos colaterais, como a constipação.

Outro efeito colateral do medicamento, também citado na bula, é a dependência. Em 21 de agosto de 2024, a Mundipharma disse, em resposta a essa investigação, porém, que a associação com a naloxona torna o uso do Targin seguro. A afirmação é falsa, segundo o pesquisador sênior da FioCruz Francisco Inácio Bastos. De acordo com o médico, a associação das duas substâncias não torna o medicamento seguro contra a dependência.

Um vídeo da Mundipharma usado para o treinamento de seus funcionários, e obtido pela coluna, mostra que, em 2022, a farmacêutica tinha o objetivo de transformar o ano seguinte no “ano de Targin” no Brasil. A peça apresenta o medicamento como “equivalente ao OxyContin” e fala em construir “o futuro de Targin com precisão”, em outra referência à confessa falta de precisão ao anunciar os efeitos do remédio protagonista da crise nos Estados Unidos. Mas o vídeo é impreciso na apresentação do risco de dependência. O tema foi tratado em breves quatro segundos, num longo texto com letras pequenas, somente no início do vídeo.

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A exemplo do OxyContin, o Targin é um comprimido com liberação lenta na corrente sanguínea. O desbloqueio controlado da substância no sangue não causa um pico no sistema nervoso central, que está diretamente ligado a efeitos colaterais, como a dependência. Em entrevista à coluna, Walter Almeida, gerente de Acesso da Mundipharma, afirmou que, no Brasil, nunca chegou a ser vendido o mesmo OxyContin comercializado no início da década de 1990 nos Estados Unidos. “O Oxycontin de liberação rápida, que causou o problema nos Estados Unidos, nunca chegou ao Brasil. O que a gente trouxe para cá já era de liberação controlada”, disse Almeida.

Mas um estudo de 2003 do Departamento de Prestação de Contas do governo dos Estados Unidos (Government Accountability Office) mostra que o OxyContin de liberação controlada, aprovado em 1995, foi apontado como o causador da crise dos opioides naquele país. A informação de que a dispensação lenta no sangue mitigaria a dependência da substância também era usada pela Mundipharma na década de 1990. Nas farmácias brasileiras, desde a chegada do Targin, o OxyContin foi substituído e, há alguns anos, a Mundipharma passou a vender o medicamento apenas para uso hospitalar.

Disse o estudo do Departamento de Prestação de Contas do governo dos Estados Unidos:

“Essa característica [liberação controlada] pode ter tornado o OxyContin um alvo atraente para abuso e desvio, segundo o DEA [Departamento Antidrogas dos EUA]. Funcionários da FDA [Food and Drug Administration, agência sanitária dos EUA] pensaram que o recurso de liberação controlada tornaria a droga menos atraente para os usuários. No entanto, a FDA não percebeu que o medicamento poderia ser dissolvido em água e injetado, o que reverte as características de liberação controlada e cria uma sensação imediata de euforia, aumentando, assim, o potencial de abuso”.

*Reportagem de Bruna Lima e Guilherme Amado/Metrópoles

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