Por José Dirceu
O confronto final entre a rede social X (antigo Twitter) e o Supremo Tribunal Federal (STF), mais precisamente entre o bilionário Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes, responsável pela condução do inquérito das fake news que levou à determinação da suspensão de algumas contas de usuários do X, foi a repetição da crônica de uma morte anunciada.
A empresa, no lugar de acatar a ordem judicial a que estão sujeitas todas as empresas com sede no país, decidiu descumpri-la e fechar sua representação no Brasil, uma exigência legal. Em seguida, ignorou determinação de Moraes que lhe deu 24 horas para nomear representante legal no país, para responder pelas multas a que estava submetida pelas desobediências. Novamente, Musk fez ouvidos moucos, além de lançar mais uma série de diatribes contra Moraes e seu suposto autoritarismo e desrespeito à liberdade de expressão. Não restou outra alternativa ao ministro encarregado do inquérito das fake news do que notificar a Anatel, na noite do dia 30, para determinar aos operadores de internet o corte do acesso de seus usuários ao X, o que aconteceu ao longo das 24 horas seguintes.
O que primeiro chama a atenção é a petulância e o desrespeito do dono do X com as decisões da mais alta Corte do Brasil, uma atitude tão acintosa que levou o presidente Lula a se pronunciar no sentido de que qualquer cidadão, dentro do país ou fora dele, está obrigado a acatar as nossas leis. Ninguém está acima delas, não importa o tamanho da sua conta bancária. Mas o mais incrível é o fato de que este mesmo Elon Musk, que já mandou o Brasil “escolher entre Alexandre de Moraes e a democracia” (frase dele) obedeceu sem chiar determinações de cancelamento de perfis no X tanto na Índia (perfis de opositores ao governo do primeiro-ministro Narendra Modi, em seu terceiro mandato) quanto na Turquia (também de opositores ao regime de Recep Tayyip Erdoğan, presidente desde 2014, que governa com um regime dito parlamentarista).
Por que será que Musk decidiu enfrentar o STF, mas aceitou as exigências tanto da Índia quanto da Turquia? Mesmo sem conhecer os pormenores dos processos, é fácil supor as razões de Musk. Ambos os regimes estão longe de ser democracias liberais clássicas. Estão muito mais para regimes fortes com algumas tintas democráticas. Ambos são regimes, não importa se de direita, como o da Índia, ou mais no espectro da centro-esquerda, como o da Turquia, que têm projeto de país. E Musk é empresário. E não é bobo. Se fosse bobo, não teria acumulado a fortuna que tem.
Já nosso Brasil pode até ser um país com economia mais importante que Índia e Turquia, maior mercado, mas padece de uma grande debilidade: não tem projeto de desenvolvimento de país, porque tem um governo representativo, popular, importante, mas que não tem maioria no Congresso Nacional. E não tem controle sobre sua moeda e os juros, desde que os neoliberais, essa elite branca, escravocrata, inconsequente e nefasta que detém a economia nacional privada, assumiu o controle do país com a ascensão de Michel Temer, após dar o golpe jurídico-parlamentar na presidenta Dilma Rousseff.
Elon Musk fala grosso pois sabe qual é a composição do nosso Congresso Nacional, muito especialmente da Câmara dos Deputados que, quando se tinha tudo preparado para votar o PL 2630/20, o chamado PL das Fake News, relatado pelo deputado Orlando Silva (PcdoB/SP) – que já tinha atendido a todas as demandas possíveis – deu sinais ao presidente da Câmara dos Deputados de que o acordo não ia vingar. Retirado de pauta antes da metade do ano de 2023, o projeto dorme em berço esplêndido. Com isso, não temos nenhuma regulação para tratar das fake news, da regulação online e das multas a serem impostas às plataformas digitais e redes sociais em casos de prevaricação. Como aconteceu com o X.
Infelizmente, por uma visão estreita dos nossos deputados, que compraram a versão das big techs de que o PL 2630/20 ia restringir a liberdade de expressão (como o capitalismo gosta dessa expressão) e até a liberdade religiosa (falaram que ia restringir o uso da Bíblia, vejam só!), ele foi engavetado. Os resultados estão aí. Sem regulamentação, o STF não tem um arcabouço sólido para combater o X, que contemple um sistema de multas equilibrado e em curva ascendente em função das infrações, como o europeu.
É bom lembrar que o arcabouço regulatório só funciona pelo seu lado punitivo quando pega naquilo que dói no capitalismo, a multa. Basta dar uma olhada rápida no valor das multas aplicadas pela União Europeia aos líderes de mercado como Google, Facebook, Instagram, WhatsApp, Telegram, Alibaba. O ministro Moraes fez muito bem em bloquear as contas da Starlink, uma das empresas de Musk no Brasil, que oferece serviços via satélite de baixa órbita, para que pague as multas devidas pela X. Conglomerados só cedem pelo bolso.
O ministro Moraes também fez bem em recuar na determinação de multar em R$ 50 mil /dia qualquer pessoa ou empresa que use qualquer subterfúgio (como VPNs) para acessar o X, mesmo o site estando banido do país, e de determinar que Google e Apple excluíssem de suas lojas o aplicativo de acesso à rede, tendo em vista a possibilidade de a empresa entrar rapidamente em negociação.
O embate X versus STF é mais uma peça no tabuleiro do xadrez político atual. Tem relevância porque representa uma forma de atuação da extrema-direita internacional, como ela se comporta nos países do Sul global a depender da correlação de suas forças políticas, e como pretende, em correlações de forças mais desfavoráveis, como a que ocorre neste momento no Brasil, mandar um forte recado para os demais países dependentes, especialmente aqueles que não têm participação efetiva no desenvolvimento das tecnologias que vão dominar as próximas décadas, a começar pela Inteligência Artificial.
Só que estamos convencidos de que podemos furar o bloqueio imposto pelos países do Norte Global, muito especialmente pelo conglomerado dos monopólios estadunidenses de tecnologia, e poder participar dessa nova onda do conhecimento. Para isso, precisamos de um projeto de desenvolvimento (temos um conjunto de programas que compõem um programa de desenvolvimento), um programa articulado e alocação de recursos nas prioridades definidas. Não é simples, mas também não é impossível. É só começar a trabalhar na direção correta.
(*) José Dirceu foi ministro-chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula (2003-2005), presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e deputado federal por São Paulo.
*Opera Mundi