Conflitos fundiários escalam enquanto STF busca conciliar interesses mesmo após inconstitucionalidade do marco temporal.
“Não podemos admitir, mesmo num contexto de insegurança jurídica, que crimes sejam cometidos contra as comunidades indígenas. É inadmissível que nessa discussão se permita o quê nós assistimos lá em Mato Grosso do Sul!”, enfatiza Luiz Eloy Terena, Secretário Executivo do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) ao abordar a grave situação de violência contra os povos indígenas no estado, com foco nos recentes ataques aos Guarani-Kaiowá. Em apenas 24 horas, ataques realizados por ruralistas no último sábado (3), na cidade de Douradina, deixaram 11 indígenas feridos, dois dos quais estão em estado crítico após serem atingidos por tiros na cabeça e pescoço durante as tentativas de retomada de território pela população originária local.
Nas últimas semanas, o Brasil tem testemunhado uma escalada de violência contra os povos indígenas em diversas regiões, com destaque preocupante para Mato Grosso do Sul. A tensão aumenta desde julho, quando os Guarani-Kaiowá da Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica decidiram retomar seus territórios tradicionais, delimitados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2011.
“Esse contexto de violência não é novo e não se restringe ao Mato Grosso do Sul. Estamos vendo isso no Paraná, Rio Grande do Sul, sul da Bahia e Ceará. Isso é resultado da instabilidade social gerada pela insegurança jurídica do Marco Temporal”, afirma Terena.
Diante do cenário vulnerável dos indígenas brasileiros, Eloy faz questão de reforçar como tal postura dos invasores agrícolas nada mais é do que uma “expressão máxima do racismo que ainda existe no Brasil contra os povos originários”, e salienta que caberia ao poder público nacional valorizar a vida indígena, lembrando que em outros países a população originária só pode ser vista em museus, enquanto aqui “eles (indígenas) estão entre nós, na administração pública, escola, universidade, no trabalho e na cidade”, aponta o Secretário.
Para proteger os indígenas do Mato Grosso do Sul, terceira maior concentração de povos originários do país, são 1,2 mil pessoas, assim como as demais comunidades espalhadas por todo o território nacional, Eloy menciona a recente criação de uma Sala de Situação exclusiva para a pauta indígena, com o objetivo de mitigar e punir os responsáveis por atos de “tortura em seu mais amplo aspecto”.
O Secretário também salienta a importância da manutenção da Funai, destacando os desafios judiciais enfrentados pelo órgão, principalmente relacionados à delimitação geográfica, que é a principal causa dos conflitos com os fundiários.
“Ali (Itaporã e Douradina) é território tradicionalmente ocupado, não há dúvida disso. Mas, tanto lá quanto em várias terras indígenas do Brasil, quando a Funai, em 2011, publicou o relatório de processo de judicialização e delimitação, confirmando que é um território indígena, aqueles que se sentiram afetados foram ao judiciário. Hoje existe uma sentença da Justiça Federal de Mato Grosso do Sul anulando este estudo da Funai, aplicando justamente o Marco temporal”, relembra o Secretário.
Ainda que reconhecida e delimitada, a Terra Indígena (TI) Panambi Lagoa Rica teve sua legitimidade contestada em quatro diferentes momentos. Nesse sentido, Peralta desabafa, “não matam a gente só com bala, (mas) matam também com portaria e com artigos”, referindo-se aos reflexos do Marco Temporal.
Indefinição do marco temporal agrava conflitos
O conflito em Mato Grosso do Sul é agravado pela instabilidade gerada pela questão do Marco Temporal, que continua sendo um dos maiores desafios para o povo originário. A tese determina que a população indígena só tem direito às terras que estavam sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
“O Supremo Tribunal Federal já declarou essa tese inconstitucional, mas a discussão foi reaberta recentemente. Isso causa uma enorme insegurança, que tem consequências diretas nos conflitos fundiários”, explica Terena.
Embora o STF já tenha declarado a inconstitucionalidade da tese em 21 de setembro de 2023, a pressão para sua implementação continua forte, especialmente no Congresso Nacional.
“O Marco Temporal para nós é uma questão prioritária. Precisamos superar esse entendimento jurídico para garantir os direitos dos povos indígenas”, ressalta.
Mesmo já sendo declarado inconstitucional, na última terça (6), o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de determinação do Ministro Gilmar Mendes, realizou a primeira reunião de conciliação aspirando uma trégua por meio de acordo entre os ruralistas e os povos originários. Dentre os participantes estavam membros indicados pelo Congresso Nacional, governo federal, estadual, municipal, e representantes da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que reiteraram a postura de não mercantilização das terras.
“A nossa posição é clara, enquanto governo, estamos participando dessa comissão especial justamente para demarcar o nosso ‘não’”, afirma Eloy sobre as propostas de negociação de terras e os embates jurídicos diante da retomada indígena frente à bancada ruralista no Congresso Nacional. Ele reforça: “Não é possível fazer acordo, não é possível negociar, não é possível rediscutir o que o plenário já disse que é inconstitucional!”
Em concordância, Peralta reafirma a importância da região para os povos originários do Brasil e sublinha que “aquela terra é sagrada, é espiritualidade, é valor que não tem preço.”
Por fim, outras três datas já foram reservadas entre agosto e setembro para prosseguir com as tentativas de negociação dos territórios indígenas, que já se posicionaram contrários a continuar debatendo o que foi declarado inconstitucional pelo próprio STF.
Retomar o território
Para Eloy Terena, o reconhecimento estatal de que houve um erro no passado ao conceder títulos de propriedades a fazendeiros sem considerar a presença indígena é crucial. “Nós reconhecemos que houve um erro estatal no passado que concedeu títulos a proprietários, ignorando a presença dos povos originários que ali estavam”, afirmam lideranças do movimento indígena, destacando a necessidade de reparar essas injustiças históricas.
Os ataques aos territórios indígenas não surgiram do nada. Eles são o desdobramento de uma longa história de violência e desapropriação, que começou com a colonização europeia e se intensificou com as políticas de interiorização e colonização promovidas pelo Estado brasileiro. No século passado, após a Guerra do Paraguai, o governo brasileiro iniciou uma política de povoamento das fronteiras, ignorando a presença dos povos originários que já habitavam essas terras.
“O Estado brasileiro concedeu títulos de terra a proprietários, ignorando a presença dos indígenas que já estavam lá. Agora, temos que lidar com essa situação, garantindo a proteção dessas comunidades e seu acesso aos territórios ancestrais”, explicou o secretário.
Eloy também reforça que, no governo anterior, a população indígena não foi assistida, e relembra “que na última gestão muitas terras foram invadidas por madeireiros, garimpeiros e grileiros.” Ele também reafirma que o movimento indígena não pode ser visto como invasão, mas sim como retomada, uma “desintrusão das terras indígenas.”
Em suma, Peralta destaca a importância ancestral da região e como esses conflitos são em prol da preservação da cultura do povo indígena brasileiro. “Nós somos daqui, somos da terra, não viemos de fora e não temos para onde correr, a não ser enfrentar e ser enterrado na nossa terra mesmo!”
Da mesma forma, o Secretário enfatiza a forte conexão do povo indígena com a terra, destacando que “Tekua é a ligação com seu território que garante sua existência enquanto Guarani-Kaiowá”, conclui.
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*BdF