Entre as incontáveis polêmicas que cercam as eleições presidenciais nos EUA deste ano, uma das mais constrangedoras ganhou relevo em dias recentes com o anúncio da desistência do candidato à reeleição Joe Biden (Democratas). Em seu lugar, assume Kamala Harris como cabeça na chapa dos Democratas, a “Mulher Maravilha” que tem um passado um tanto quanto conturbado. Enquanto procuradora no Estado da Califórnia, usou e abusou de seu poder para se esquivar de investigações que poderiam envolver interesses políticos ou corporativos (em claro conflito de interesses). Além disso, foi frequentemente acusada de não agir de modo transparente ao apelar de decisões judiciais que declaravam inconstitucionais a pena de morte, enquanto ao mesmo tempo defendia a pena capital em outros casos. Mas, já que seu passado a condena, a ideologia do “parecer ser” a absolve na mitologia democrática das eleições americanas de 2024.
Trata-se da ideia simplória (para não dizer ingênua) de que a luta contra o retorno de Donald Trump (Republicanos) seria antagonizada pela “esquerda” (que no caso dos EUA em nível nacional é uma fábula). Esta construção cultural de que “democratas” seriam a equivalência de “esquerda” e os republicanos “direita” é uma total e completa falta de compreensão do próprio sistema político dos EUA ao longo da História. Insistir na crença desta imaginária polarização nas altas esferas do Imperialismo, quando não fé ingênua, trata-se de uma desonestidade intelectual e comportamento até certo ponto tolerante com a barbárie e a criminalidade dos próprios democratas. Estes, ao contrário do que buscam vender nos discursos, são os grandes fiadores das campanhas militares mais genocidas que o Mundo conheceu nas últimas décadas (para pegar um corte cronológico generoso com as novas gerações). Para exemplificar com um período mais curto, a coisa vem feia desde os tempos de Barack Obama (me refiro aqui à campanha na Líbia e Síria só para selecionar dois exemplos graves deste período). Em muitos casos, estas criminalidades decorrentes de uma correlação desigual de forças na ordem capitalista global são disfarçadas cinicamente pela criatividade do pensamento neoliberal (que dialoga e muito com a burguesia decadente deste mesmo período e que se encostou com sucesso na intelectualidade ocidental, como muitos teóricos pós-modernos). Esta tragédia incide lamentavelmente na luta política da sociedade e possui suas origens na década de 1970 quando o próprio Capital passa a alocar recursos para favorecer, no metier intelectual, a legitimação filosófica daquilo que iríamos conhecer como a era do Capital destrutivo (Neoliberalismo).
Este discurso reduz a política a uma questão cosmética. O conflito na História deixa de ser estrutural para ser uma luta de posturas, identidades individualizadas, opiniões e predileções subjetivas. Trata-se de uma política de “física de partículas”, uma postura inofensiva que em nada incomoda o núcleo do poder financeiro global, os verdadeiros arquitetos da destruição. Este novo perfil de luta, individualizada, diluída no caos da sociedade criou uma grande cortina de fumaça nos clássicos conceitos de direita e esquerda, principalmente neste último, o grande alvo. Devemos, a partir desta ótica, encobrir por completo o apoio que o governo Biden-Harris conferiu ao genocídio em Gaza para então, subitamente, em nome da suposta “lindeza da democracia americana” apoiar a candidatura de Kamala Harris, uma mulher negra que irá enfrentar um homem-cis branco? Estes termos esteticamente bonitos nos dão a impressão que as políticas afirmativas de identidade são a grande “salvação” e levam os ideólogos do pensamento identitário à loucura. Este debate, ou seja, a da afirmação das identidades é importantíssimo mas não é fundamental e se quer se sustenta na própria Ordem do Capital. O Capital utiliza essa discussão como amortecedor da crise estrutural mas não é a discussão em torno das identidades dos indivíduos que irá promover a superação da Ordem e sim a consciência de classe, a classe trabalhadora. Grande parte da opinião pública não percebe que a luta é estrutural.
Quando o tema é reduzido a um nível de política vulgar, não é o direito econômico da classe trabalhadora americana ou global que está em jogo. O que está em jogo é uma dança das aparências dentro do próprio sistema-Mundo do Capital. Se Kamala Harris parece enquanto indivíduo ser uma pessoa oprimida, é o que basta para legitimá-la no poder. Ser ou não ser, Kamala Harris oriunda do sistema judiciário californiano com uma das piores famas possíveis diante da opinião pública americana pelo seu grau de truculência é ou não uma vítima? Seria sua eleição uma elevação da qualidade de vida da classe trabalhadora americana? Certamente não, nem com ela e nem com Trump. Não se trata de escolher lado “a” ou lado “b” desta vez. Trata-se de assumir a miséria absoluta da política interna do Imperialismo em decadência.
É um grave equívoco delegar a política e o uso de determinadas categorias analíticas a uma questão de discurso identitário. Classificar Kamala Harris como “esquerda” nos EUA é o que mais se aproxima de uma piada, para não dizer analfabetismo político e até histórico. Um breve estudo de História não só dos EUA como das Américas seria o suficiente para que o próprio cidadão americano começasse a questionar por qual motivo ou circunstância Kamala Harris, filha de imigrantes, é conivente enquanto vice-presidente de práticas genocidas em Gaza (paga pegar exemplos da política externa dos EUA). Ou então conivente com a morte de milhares de inocentes na Guerra da Ucrânia instigada pelo próprio governo Biden-Harris quando este estimulou a adesão ilegal da Ucrânia à OTAN.