Embora isolada e mal planejada, a ação orquestrada pelo ex-comandante do Exército Juan José Zúñiga expõe “fraturas de poder” com a chegada de Evo Morales em 2006. Sua política redistributiva de renda e nacionalização dos hidrocarbonetos trouxe muita insatisfação à elite.
A tentantiva de golpe militar na Bolívia do ex-comandante do Exército, Juan José Zúñiga, nesta quarta-feira (26) foi avaliada como uma iniciativa isolada, mal planejada, em um contexto de crise econômica e disputa política. O militar havia sido demitido na terça-feira (25), depois de ameaçar o ex-presidente Evo Morales, que pretende concorrer novamente às eleições.
“O general teve um erro de cálculo político. Achou que receberia algum respaldo ao ameaçar o Evo Morales. Mas o atual presidente boliviano bancou a aposta e tirou o general do comando do Exército. E aí ele se viu numa situação de isolamento e tentou o golpe de uma maneira muito improvisada, sem participação de outras lideranças das Forças Armadas. E foi importante ver que ele não teve apoio significativo de nenhum grupo social do país”, disse o cientista político e professor de Relações Internacionais Maurício Santoro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
“O Evo Morales já convocou uma greve geral e tem os movimentos sindicais muito alinhados com ele. O próprio presidente Luis Arce também veio a público para pedir que a sociedade boliviana se junte contra esse golpe. E setores da oposição se colocaram contra o golpe. A própria Jeanine Añez, que já foi presidenta e opositora do Evo, disse que não aceita o que aconteceu. O Luís Camacho, importante líder contra o Evo Morales em 2019 falou que não aceita também. Então, esse movimento de golpe parece isolado. Muito mais uma tentativa do Exército e do próprio Zúñiga de demonstrar poder, do que de fato querer impor um novo governo”, disse Arthur Murta, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
Crise econômica e disputas políticas
Em segundo lugar, o ato do general pode ser entendido a partir de problemas mais estruturais que o país enfrenta, como a dimensão econômica.
“A Bolívia está vivendo uma situação econômica muito difícil. O principal setor é o de gás natural, que está enfrentando uma série de problemas. Isso levou a uma queda nas exportações, e as reservas internacionais da Bolívia estão muito pequenas, em torno de US$ 3 bilhões. O que é nada para as necessidades de um país. Para comparar, o Brasil que tem uma situação bastante confortável em termos de reservas tem hoje mais de US$ 350 bilhões. Isso significa que a Bolívia está com muita dificuldade de importar mesmo produtos básicos para o dia a dia: alimentos, remédios, combustíveis”, disse Maurício Santoro, segundo a RBA.
“Os países andinos estão baseados no extrativismo pesado e com os preços nas alturas. O Estado quer se apropriar de uma parte desse excedente econômico. E grupos nacionais e multinacionais querem pegar absolutamente tudo. Mas não é como Salvador Allende. Na década de 70, que estava mantendo a companhia do cobre sob o controle, ou estatizando empresas. Agora é o contrário, é uma administração que quer se apropriar de parte desses excedentes para a realização de políticas públicas. A classe dominante e as multinacionais nem isso topam. Então nós ficamos sempre numa situação limite entre o Estado e essas forças sociais”, disse o professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Nildo Ouriques.
Do ponto de vista das disputas políticas, as tensões entre diferentes líderes e partidos do país contribuem para aumentar os riscos à democracia.
“O componente político dessa crise é o fato de que no ano que vem a Bolívia vai ter eleições presidenciais e o general que tentou o golpe hoje disse ontem que se o Evo Morales se apresentar como candidato à presidência, as Forças Armadas iriam intervir e prender o Evo. Há poucos anos aconteceu uma crise política semelhante na Bolívia, em 2019, que terminou com a deposição do Evo e a intervenção dos militares. Então, é uma ferida que ainda está aberta”, disse Maurício Santoro.
“Se voltarmos mais no tempo, a década de 1990 é relativamente estável na Bolívia. As tensões começam com a chegada ao poder do Evo Morales em 2006, que provoca fraturas de poder. Ele começa a fazer política redistributiva de renda, nacionalizar os hidrocarbonetos, entre outras questões, que geram insatisfações com a elite. A Bolívia ela entra num cenário de piora dessa estabilidade democrática, porque o Evo desestabiliza um sistema anterior de poder, em que a população pobre indígena estava sub-representada. Isso faz crescer o movimento reacionário, que se manifesta até hoje”, disse Arthur Murta.
Contexto regional e a tentativa de golpe na Bolívia
Os pesquisadores consideram também um contexto mais amplo na América do Sul, com avanço de grupos e lideranças de extrema-direita. Isso representa o crescimento de movimentos autoritários e antidemocráticos. Em alguns casos recentes, houve tentativas de golpe igualmente fracassadas.
“Essa tentativa de golpe faz parte de um contexto mais amplo de crise da democracia na América Latina. Esse ano a gente teve na Guatemala uma tentativa de impedir a posse de um presidente eleito. Manifestantes invadiram o Congresso no Brasil no ano passado em tentativa de golpe. Bom que a democracia está resistindo e mostrando ter anticorpos e ser mais resiliente. Mas é preocupante que todas essas crises estejam ocorrendo na região nos últimos anos”, disse Maurício Santoro.
“O que foi positivo hoje é que a resposta internacional foi muito forte na defesa da democracia boliviana. Todos os países da América do Sul se manifestaram em maior ou menor grau em defesa da democracia. Isso foi uma coisa importante. A Organização dos Estados Americanos também respondeu de modo muito rápido e contundente”, acrescentou.