China enfrenta a bolha imobiliária

China enfrenta a bolha imobiliária

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O destino das crises econômicas é produzir cada vez mais desigualdade e pobreza?

No Ocidente, a Grande Recessão iniciada em 2008 a partir do setor imobiliário devastou o Estado de bem-estar social, multiplicou a riqueza dos rentistas e tornou ainda mais penosa a luta por um teto.

Na Espanha, por exemplo, os aluguéis passaram a consumir em média 40% dos salários da população mais jovem e em consequência 64% dos adultos com até 35 anos são constrangidos a continuar vivendo com seus pais (eram 36%, antes da crise).

Mas para enfrentar sua própria bolha imobiliária – que levou, em janeiro, à falência da Evergrande, uma gigante que acumulara 300 bilhões de dólares em dívidas –, o governo chinês está tecendo uma saída distinta.

As medidas foram anunciadas em 17/5, em entrevista coletiva do vice-primeiro-ministro Li Hefeng, e reforçadas por um comunicado conjunto do Banco do Povo da China e da Agência Nacional de Regulação das Finanças.

Há três ações fundamentais.

Primeiro, as condições para compra de novas moradias foram muito facilitadas. As taxas de juros caíram para 2,35% ao ano, o patamar mínimo das prestações mensais baixou e o valor da entrada, na compra do primeiro imóvel, é agora de apenas 15% do total.

O segundo feixe de ações tenta evitar novas quebras de empresas imobiliárias.

As cidades agora podem relaxar, caso desejem, as medidas antiespeculativas adotadas nacionalmente em 2020 – entre elas, a restrição à compra de um segundo imóvel.

Os projetos de construção inacabados (são milhares, em todo o país) e considerados saudáveis poderão voltar a receber financiamento público.

O terceiro bloco de ações, porém é o mais inovador e anticonvencional. O governo central está estimulando as administrações locais a comprar em massa apartamentos vagos para oferecê-los, em aluguel social, a quem ainda não pode adquiri-los.

Onde não há imóveis, mas terra disponível, as prefeituras podem constituir empresas públicas para construir e ofertar nas mesmas condições.

Um fundo nacional com recursos iniciais equivalentes a 41,6 bilhões de dólares (15,6 vezes o orçamento do Minha Casa, Minha Vida) financiará estas iniciativas.

A expectativa deste conjunto de políticas é esvaziar a bolha imobiliária chinesa por meio da facilidade do acesso à casa – ao contrário do que ocorreu nos países capitalistas.

Mas como esta bolha se formou? (Segundo o New York Times, haveria na China 4 milhões de imóveis prontos e não vendidos). Quais são os riscos associados a ela? Como fazê-la desinflar?

As respostas podem ser encontradas ao analisar as distintas etapas do projeto de socialismo na China – seus avanços, contradições e desafios.

Uma inspirada análise publicada no site interna Dong Seng apresenta estas distintas fases. O contexto geral é notável.

Em 1949, quando o Partido Comunista (PCCh) chegou ao poder, apenas 11% da população, ou 55 milhões de pessoas, viviam nas cidades.

Em 2022, este número já tinha chegado a 921 milhões (65% dos chineses) e a tendência é de que continue crescendo. Como oferecer moradia a tanta gente?

A primeira resposta foi a coletivização, iniciada logo após o triunfo do PCCh.

As casas e apartamentos eram construídos pelas empresas estatais para seus empregados, pelas prefeituras e por outras instituições públicas. Os moradores pagavam aluguéis muito baratos.

Em 1980, 75% das pessoas viviam nestas condições. Porém, a igualdade estava estabelecida num patamar de pobreza.

A área média de teto disponível por pessoa era de apenas 6,7m². O desenvolvimento de novas construções tardava. O modelo retardava a urbanização e bloqueava o projeto de industrializar o país.

A partir dos anos 1980, após anos de debates e conflitos no país e no próprio PCCh, a China adotou reformas que tinham por objetivo a construção de um “socialismo com mercado”.

O Estado jamais deixou de coordenar a atividade econômica. Não houve restauração do poder burguês.

Mas em muitos setores foram permitidas relações de produção típicas do capitalismo – empresa privada, assalariamento, busca do lucro.

Julgou-se que elas eram essenciais para desenvolver as forças produtivas, no estágio em que estava a economia chinesa. E um dos setores típicos onde esta transição se deu foi o imobiliário.

Em 1993, já havia 505 construtoras privadas no país. Em 2021, este número havia saltado para 122 mil, com importante presença de capitais estrangeiros e algumas corporações (como a chinesa Evergrande) oferecendo ações também em Wall Street…

Em pouco mais de quatro décadas, o “socialismo com mercado” transformou a China.

A produção industrial do país é, de longe, a maior do mundo e supera a das cinco economias seguintes (EUA, Japão, Alemanha, Índia e Coreia do Sul), juntas.

O PIB per capita disparou: de US$ 312 (1980) para US$ 12,6 mil agora. A construção imobiliária foi capaz de atender à urbanização e à melhora das condições de vida.

Em 2019, 92,6% da população morava em suas próprias casas – em geral, apartamentos com poucos anos de construção e mais espaçosos que a média internacional.

Mas as relações capitalistas cobraram um preço. Um mercado descomunal – onde se vendem bens de alto valor a centenas de milhões de consumidores com renda ascendente – permitiu o surgimento de um punhado de empresas agigantadas.

Como é normal em todo o mundo, no setor, elas vendem antecipadamente imóveis que entregarão apenas anos depois.

A prática é propícia ao surgimento de esquemas tipo “pirâmide”, em que dívidas muito vultosas, assumidas hoje, só serão honradas se as receitas previstas para o futuro se concretizarem.

A febre foi retroalimentada pela própria ação do público. Num mercado em ebulição, com preços tendendo à alta, as pessoas com rendas sobrantes tendem a aplicá-las em imóveis não com objetivo de utilizá-los, mas de aguardar sua valorização.

No início da década de 2020, os delírios produzidos por esta bolha haviam tornado boa parte das empresas do setor superendividadas, à beira de se inviabilizarem.

Elas corriam o risco de se tornarem “grandes demais para quebrar”, já que sua eventual falência resultaria em grandes perdas ao público e poderia gerar uma espiral de calotes, arrastando outros setores da economia e os próprias finanças dos municípios, que são credores das incorporadoras imobiliárias.

As consequências políticas, num país em que o Estado e o Partido Comunista são vistos como responsáveis pelo bem-estar da população, pareciam imprevisíveis.

*Antonio Martins/Outras Palavras

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