Enchente expõe sucateamento do serviço de água e esgoto em Porto Alegre 

Enchente expõe sucateamento do serviço de água e esgoto em Porto Alegre 

Compartilhe

 

“Eu tenho certeza de que a prefeitura de Porto Alegre está atolada em culpa. E eu não estou falando do Dmae (Departamento Municipal de Água e Esgoto), estou falando da prefeitura mesmo”. A avaliação sobre a enchente na capital gaúcha é de uma pessoa que trabalha há anos no órgão e conhece de perto o processo de precarização dos serviços públicos promovido pelas últimas gestões, o que contribuiu diretamente para a desastrosa situação enfrentada hoje pelos porto-alegrenses.

Ao falar com o Portal Vermelho, essa pessoa preferiu não ser identificada. De maneira bastante enfática, diz que faltou manutenção adequada em parte do sistema antienchente da cidade, problema que tem, na sua avaliação, “absoluta relação” com o sucateamento dos serviços públicos. Esse processo levou a uma sensível redução no quadro de funcionários e nos recursos para o acompanhamento rotineiro dos equipamentos.

“Essas denúncias vêm sendo feitas há anos por vários setores e entidades, mostrando que o Dmae está sendo precarizado, que é necessário fazer concurso, mas o que a gente tem visto é o governo retardando a entrada de servidores”, explica.

Além disso, acrescenta que o departamento “não tem servidores para dar conta de toda a estrutura, todo o parque de saneamento, as casas de bombas, as comportas, os motores, enfim, todos os equipamentos necessários para o bom andamento do saneamento em Porto Alegre. E o teste da infraestrutura e equipamentos acaba sendo na hora em que os eventos ocorrem e seria necessário antecipar os problemas antes das inundações acontecerem. Isso não foi feito porque não há perna suficiente”.

Soma-se a isso a dificuldade de a equipe fiscalizar os 68 quilômetros de diques espalhados pela cidade. “Isso exige uma estrutura muito maior do que o Dmae dispõe hoje. Então, nesse sentido, a prefeitura está tapada de culpa. Porque é uma questão de gestão, de dimensionar a estrutura que vai ser capaz de cobrir tudo isso”, relata.

De acordo com essa fonte, “depois da cheia de setembro do ano passado, quando o nível do Guaíba chegou a 3,19m, o Dmae tomou conhecimento de que havia uma falha de concepção nas casas de bombas do esgotamento pluvial. De lá para cá, se passaram cerca de sete meses, um período muito pequeno para conseguir resolver esses problemas. O que chama atenção é que esses apontamentos foram feitos em 2018 e isso é muito grave. Ou seja, eles foram relapsos, fizeram pouco caso”.

Ainda segundo o seu relato, o diagnóstico — feito por engenheiros do antigo Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) pouco antes da sua extinção pelo então prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) — apontava que “com o Guaíba acima de 3,30m, as casas de bomba têm fragilidades sérias que precisam ser corrigidas. Caso contrário, a água vai entrar através delas”.

No dia 2 de maio, as águas do Guaíba ultrapassaram a cota de inundação, de três metros, chegando a 3,6 m e começaram a entrar na cidade. Na sequência, várias casas de bomba e estações de tratamento tiveram suas operações suspensas devido aos alagamentos. No dia 3, apenas quatro de um total de 23 casas de bomba estavam em funcionamento e vários bairros foram alagados. Até esta quinta-feira (16), nove estavam em operação.

Casa de bomba da Avenida Mauá, no Centro de Porto Alegre. Foto: Governo do RS

Sistema de proteção

Segundo Fernando Dornelles, doutor em Recursos Hí­dricos e Saneamento Ambiental e pesquisador do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do RS (UFRGS), “quando a gente ocupa planícies inundáveis, a gente está ocupando uma zona suscetível a enchentes. O melhor seria não ocupar, mas no momento em que se ocupa, a gente pode pensar em se precaver, se proteger, que foi o caso aqui de Porto Alegre, quando foi feito esse sistema de proteção”.

O sistema foi projetado após a cheia de 1941 e entrou em operação nos anos 1970. É composto pelo muro da Avenida Mauá (onde fica parte das comportas), além do muro de concreto no Centro Histórico, casas de bombas e diques espalhados por diferentes pontos da cidade, ao longo de 68 km.

Para ele, um dos pontos vulneráveis do sistema pode estar na falta de vedação adequada das comportas. “Essas comportas eram para ser autônomas. Elas não necessitariam de nenhum aparato extra (como os sacos de areia que foram colocados) para conseguir impedir que a água passasse pelo sistema de proteção”.

Outro aspecto que destacou foi a saída de água pelas tampas de inspeção: “Essas tampas, que dão acesso para a vistoria nas galerias, têm de ser resistentes e suportar a pressão à qual vai estar submetida durante esses eventos de cheia do Guaíba”.

De maneira geral, resume, “a parte de drenagem pluvial em Porto Alegre ficou sucateada, sem um corpo técnico valorizado e capacitado”.

Precarização e desmonte

Como uma série de órgãos da administração pública de outras cidades submetidas à lógica privatista neoliberal, há tempos o Dmae vem sendo sucateado, como forma de justificar sua venda. E esse processo se intensificou, sobretudo, nas duas mais recentes gestões de Nelson Marchezan Jr. (PSDB), que esteve à frente da prefeitura entre 2017 e 2020, e Sebastião Melo (MDB), que tomou posse em 2021.

Em 2007, o departamento contava com 2.493 funcionários; hoje, são 1.050, ou seja, menos da metade. O último concurso do Dmae aconteceu em 2014 e, em 2022, Melo preferiu não contratar 443 funcionários, mesmo tendo sido autorizado pela Secretaria da Fazenda, diz o Vermelho.

A queda nos investimentos também foi abrupta na última década: de quase R$ 240 milhões em 2012 para cerca de R$ 137 milhões em 2022. Funcionários ainda acusam o prefeito de reter cerca de R$ 400 milhões da autarquia, que poderiam estar sendo usados para melhorias nos serviços.

Para completar, conforme recentemente noticiado pelo jornal Folha de S.Paulo, o sistema de proteção contra cheias recebeu 23% a menos do orçamento destinado à manutenção dos equipamentos nos últimos sete anos.

O UOL também apurou que em 2023, a prefeitura não aportou nada em prevenção a enchentes e que houve queda no valor gasto com essa área entre 2021, quando foi de R$ 1,7 milhão, e 2022, quando desabou para R$ 141 mil. Segundo a prefeitura disse ao site, houve gastos em prevenção, mas feitos por meio de outras áreas.

Ainda na gestão Marchezan, a prefeitura perdeu R$ 121,9 milhões que seriam destinados, pelo governo federal, a obras de prevenção a cheias, valor que serviria, entre outras coisas, para a reforma de 13 casas de bombas, segundo o site Matinal.

Auditoria realizada pelo Tribunal de Contas do Estado, cujo resultado foi divulgado em março, mostrou que o governo Marchezan interferiu para impedir a contratação de servidores que eram necessários para a prestação do serviço de água e esgoto da cidade, causando prejuízos à operação da autarquia de, no mínimo, R$ 85 milhões.

Compartilhe

%d blogueiros gostam disto: