Lideranças falam sobre lançamento da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana na ALRS.
O Rio Grande do Sul é o estado que tem mais casas de terreiros no país, chegando próximo a 65 mil. Também é apontado como um dos mais racistas do país, o aparece quando falamos dos povos tradicionais de matriz africana. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública divulgados pelo GZH, o número de registros policiais por preconceito religioso teve aumento de 250% nos últimos três anos no RS: foram 20 casos em 2021 e 70 em 2023. Em Porto Alegre, cidade onde houve o maior volume de registros, o número de casos passou de 11 em 2021 para 29 em 2023, aumento de 164%.
Com o objetivo de aglutinar forças para o enfrentamento ao racismo estrutural e institucional, assim como dar reconhecimento à importância dos povos tradicionais de matriz africana, será reinstalada, nesta quinta-feira (18), a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Evento aconteceu na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
A deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB), que presidirá a frente, explica que a iniciativa é proposta pelo Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma). De acordo com ela, a cada legislatura o fórum delibera internamente, entre seus pares, com representatividade estadual, e apresenta a um parlamentar a solicitação de instalação dessa frente.
“Nessa legislatura abracei esse convite, com muito carinho, por ser a primeira mulher negra e da tradição de matriz africana, assumidamente. Ainda mais por ser a primeira deputada preta eleita deputada estadual no RS, na história da Assembleia”, afirma Bruna Rodrigues.
A parlamentar explica que a frente é constituída de forma pluripartidária e busca a integração entre o poder público e as entidades da sociedade civil. O objetivo é aglutinar forças para o enfrentamento ao racismo estrutural e institucional, às discriminações, ao genocídio, ao etnocídio e ao epistemicídio dos povos de matriz africana. Assim como a promoção do reconhecimento da importância na construção, tanto arquitetônica quanto sociocultural, da sociedade riograndense, e para promover reparação das perdas significativas e permanentes impostas a estes povos.
Conforme reforça Bruna, a frente dará a devida atenção e visibilidade a essa pauta “historicamente marginalizada”. Ela defende que o assunto é de responsabilidade e interesse de todas e todos. “Se fez urgente a retomada e permanência desse espaço, desse instrumento de construção e de debate sobre o tema, mobilizando apoio político e popular, e criando bases para a instituição de programas e políticas públicas relacionadas aos povos tradicionais de matriz africana”.
:: ‘O racismo religioso tenta nos matar na essência, na origem’, afirma Baba Diba de Iyemonjà ::
“A Frente Parlamentar terá o papel de dar visibilidade as denúncias de violação de direitos bem como barrar projetos que se configurem inconstitucionais e racista”, complementa Baba Diba de Iyemonja, presidente do Conselho do Povo de Terreiro do estado do RS.
O Brasil de Fato RS conversou sobre o lançamento da frente com a Ialorixá Iyá Vera Soares, coordenadora do Fonsanpotma, e o babalorixa Baba Diba de Iyemonja, que é coordenador nacional da Renafro Saúde.
Brasil de Fato RS – Qual a importância da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana na ALRS?
Iyá Vera – Quando alguns anos atrás já percebíamos sinais de possíveis retrocessos, quando tínhamos uma luta cotidiana que os que chegaram antes deixaram como legado, vimos ser importante a criação de espaços como a frente. Ela será importante para abrir um espaço de diálogo de nós, povos tradicionais de matriz africana, e os parlamentares que acreditamos ter mandatos comprometidos com as nossas causas, com organicidade e parcerias nas nossas demandas com a nossa visão de mundo, com nossas tradições.
Baba Biba – O Rio Grande do Sul registra o aumento dos casos de racismo religioso através da queixa dos vizinhos por conta do barulho dos tambores, sinetas e até o cheiro da defumação. O Ministério Público de diversas cidades tem acolhido as denúncias e atuado de forma reversa ao direito penalizando e contribuindo para a marginalização do espaço de terreiro seguido pela Brigada Militar e fortalecendo o racismo religioso.
Agressões verbais como ‘está repreendido’ ou ‘está amarrado’ ou até mesmo o impedimento de fazer uma oferenda em espaços públicos – com ameaças inclusive de arma de fogo -, lançamento de sal grosso ou óleo ungido em espaços de terreiro são práticas comuns e naturalizadas como atos para matar um dito demônio.
No estado gaúcho as instituições têm dificuldade de entender o espaço de terreiro enquanto espaço religioso e enquanto lócus da cultura afro e de muitas ações sociais. Inclusive com práticas de cuidado e acolhimento em saúde, já que as terapêuticas produzidas nestes espaços contribuem para o bem-estar de quem acessa e, consequentemente, para o desafogamento do SUS. Terreiros são espaços de resistência de educação e memória de um povo marginalizado desde que aqui chegou de à força.
A partir do golpe de estado contra o governo democrático e popular Dilma Rousseff, o racismo religioso só cresce por conta da associação do estado com as religiões neopentecostais. O fundamentalismo religioso tomou conta do país sob o slogan: Deus (Cristão), Pátria (evangélica) e Família (cristã, branca, rica e heteronormativa).
As assembleias legislativas são os espaços onde as leis são feitas e debatidas. Casa do povo onde a democracia se consolida, onde estão os representantes do povo neste contexto. Se qualquer segmento da sociedade não estiver ali representado, como o povo de terreiro por exemplo, corre o risco de perder o direito e ser penalizado.
A frente parlamentar é um instrumento de fiscalização, monitoramento, escuta, revisão da legislação estadual. Se configura em uma estratégia importantíssima e robusta para o enfrentamento e combate do racismo religioso no nosso estado. Forma de barrar a injustiça na origem, já que a bancada da bíblia unida à direita constantemente surge com novas propostas que trazem em suas entrelinhas a perseguição aos terreiros tanto no que diz respeito a território como as liturgias.
Como descreveria o cenário dos povos tradicionais de matriz africana no RS?
Iyá Vera – No Rio Grande do Sul, os Povos Tradicionais caminham em busca dos valores que direta ou indiretamente têm que se reafirmar buscando políticas de reparações por toda a contribuição que esses povos deram para essa terra chamada Brasil.
Hoje, temos a maioria da tradição de matriz africana aqui, juntando a Umbanda que os indígenas deixaram e misturaram, a outra linhagem que é de Exu, que são as divindades que vivem nas ruas e que vivem representando a luta do dia a dia. Hoje, o Rio Grande do Sul tem muita casa de tradição. Mas vamos fazer um percentual do que tem de povo branco na tradição de matriz africana, pela questão do religar, dessa religião que é o sincretismo.
Baba Diba – Enquanto povo de terreiro ou povo tradicional de matriz africana jamais passaremos invisível na luta. Estamos politicamente organizados. Só nos falta eleger um representante babalorixa ou ialorixa para ocupar os cargos eletivos e nos representar de fato e direito. Eleger um representante de esquerda. A direita privilegia o capital e a elite branca, jamais acolhera nossas pautas de fato. Fazemos questão nos auto denominar povo no singular. Povo traduz legião e remete a território.
A consciência da unidade política é que nos falta. Estamos investindo em formação e informação através de um processo franco de politização mostrando que nosso coração bate do lado esquerdo. Ficamos muitos anos recolhidos no nosso canto, coagidos pelo racismo e a possibilidade de abstraírem nossa existência como abstraíram nossa língua de origem e tentaram abstrair nosso sagrado.
Somos um povo que prima pela coletividade e o bem-estar social como princípio básico de humanidade. Este bem-estar social e a humanidade traz como eixo saúde, educação, segurança alimentar, terra, moradia, cultura, acesso ao direito inclusive de existir e professar nossa religiosidade, já que as estatísticas estão aí dizendo quem morre nesta luta desigual.
Em um cenário estadual, de um governo de direita, somos sim resistência e oposição. Saímos às ruas para que a lei seja cumprida e exigir que se realize nossa conferencia estadual e se reconduza nosso Conselho do Povo de Terreiro do Estado do RS – Conselho de direitos sociais do povo de terreiro conquistado e consolidado em 2014 no governo de Tarso Genro. Somente dez anos estamos conseguindo colocar em pauta a Segunda Conferencia do Povo de Terreiro do Estado do RS, negligenciada pelo governo Sartori e pelo primeiro mandato de gestão do governo Leite.