Antes de Musk começar ataques ao STF, lideranças nacionais e estrangeiras aproveitavam viralização do caso para associar Lula ao autoritarismo.
A crise que escalou a tensão entre autoridades brasileiras e o bilionário americano Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), teve início quatro dias antes com uma série de publicações na rede social. Mas, antes de o bilionário começar o embate com a Suprema Corte, uma rede transnacional de extrema direita ajudou a disseminar a versão bolsonarista da história — segundo a qual existiria uma “ditadura” no Brasil — para milhões de pessoas.
No domingo, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes mandou investigar Musk após o empresário ameaçar descumprir ordens judiciais requerendo informações sobre usuários e suspendendo contas de investigados. Horas antes, o governo Lula subira o tom ao afirmar que o Brasil é soberano e não vai permitir afrontas à Pátria.
Musk ecoa a crítica de muitos opositores de Moraes, sobretudo aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, acerca da conduta da Corte nas investigações contra suspeitos e acusados de tentar minar a democracia brasileira. As queixas recaem no que dizem ser falta de transparência e discricionariedade nas decisões da Corte. Mas os atores envolvidos tentam associar a figura do presidente Lula ao autoritarismo, como parte da disputa política travada entre os dois campos.
A centelha que causou o incêndio foi acesa na quarta-feira, quando o jornalista estadunidense Michael Shellenberger expôs no X uma suposta troca de e-mails entre funcionários da plataforma relatando pressão de autoridades brasileiras por dados sigilosos dos usuários da rede — os chamados “Twitter files”, ou arquivos do Twitter. A divulgação do conteúdo teve parceria de dois brasileiros alinhados ao bolsonarismo, David Ágape e Eli Vieira. A sequência de tuítes tinha alcançado 30 milhões de pessoas até esta terça-feira.
No mesmo dia, Shellenberger foi compartilhado por lideranças de extrema direita no Brasil como os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG), Bia Kicis (PL-DF) e Gustavo Gayer (PL-GO), comunicadores como Ana Paula Henkel, o ex-procurador da Lava-Jato Deltan Dallagnol e até mesmo o diretório nacional de seu partido, o Novo. O assunto domina o ecossistema bolsonarista nas redes sociais desde então.
A interação de contas populares de outros países ajudou o assunto a furar a bolha brasileira. O Visegrád24, perfil de direita com quase 1 milhão de seguidores no X que estourou de popularidade a partir da cobertura da invasão russa na Ucrânia, foi um dos primeiros a dar holofote ao caso.
Em meio à divulgação da troca de e-mails no Twitter, o discurso de que o Brasil estaria se tornando uma ditadura — versão que bolsonaristas têm propagado fora do país para desqualificar as investigações contra seu grupo político —, assumia aos poucos lugar central no episódio.
Na sexta-feira, por exemplo, o deputado do Parlamento Europeu Hermann Tertsch, ligado ao Vox (partido de extrema direita espanhol), anunciou um debate para esta terça-feira com Kicis, Eduardo, Gayer e Marcel van Hattem (Novo). O tema: “A repressão de Lula ao Estado de Direito”. Na imagem divulgada estavam fotos de Lula e Moraes, acima da frase “pare com a repressão”. A youtuber Jamile Davies, que esteve com Bolsonaro no funeral da rainha Elisabeth, em 2022, repercutiu o evento de Tertsch.
Os temas da insatisfação de funcionários do Twitter com a pressão de autoridades brasileiras com o de uma suposta escalada no autoritarismo no país foram se fundindo. O deputado holandês Rob Roos, também do grupo dos conservadores no Parlamento Europeu, escreveu: “o Brasil dá uma guinada em direção a uma ditadura sob Lula que, com a cumplicidade de Alexandre de Moraes, o verdadeiro executor contra a liberdade de expressão, tem lançado ataque sobre a democracia”.
Todas as publicações mencionadas foram depois apagadas.
Após publicar o “Twitter files”, Shellenberger esteve em Porto Alegre para o encontro do Fórum da Liberdade, evento ligado ao pensamento liberal que exibe palestras sobre economia e política, recepcionado por van Hattem (foto que estampa esta matéria). O deputado gaúcho diz que o estadunidense “decidiu prolongar sua estada no Brasil para estar ainda mais ao nosso lado nessa batalha pela liberdade de expressão”.
— O Brasil está à beira da ditadura nas mãos de um ministro totalitário do STF chamado Alexandre de Moraes. O presidente Lula da Silva está participando desse impulso em direção ao totalitarismo — declarou o estadunidense em um vídeo gravado em português, ecoando o discurso bolsonarista.
O vídeo, somado aos primeiros tuítes de Musk sobre o assunto, atiçou ainda mais o ecossistema de extrema direita e foi compartilhado por muitos estadunidenses. Algumas das figuras que endossaram o discurso são Robert Kennedy Jr, candidato à presidência dos EUA; Santiago Abascal, presidente do Vox e aliado de Eduardo Bolsonaro na Espanha; e Glenn Greenwald, jornalista estadunidense cofundador do site The Intercept.
O argentino Fernando Cerimedo, conhecido no Brasil depois de divulgar uma live com mentiras sobre a legitimidade das urnas eletrônicas nas eleições de 2022 no país, também tem participado do engajamento. À época, o conteúdo foi amplamente divulgado por bolsonaristas e terminou suspenso pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Cerimedo foi estrategista digital de campanha de Javier Milei à Presidência da Argentina.
André Ventura, fundador do partido português “antissistema” e aliado de Eduardo, agradeceu a Musk pelos ataques ao STF. Ian Miles Cheong, comunicador de direita da Malásia, sugeriu aos brasileiros usar uma conexão VPN para continuar acessando o X caso a Justiça brasileira bloqueie a rede social.
Os laços criados pelo bolsonarismo e outros grupos de extrema direita ao redor do mundo têm sido estreitados com articulação proeminente de Eduardo. Em fevereiro de 2019, o ex-estrategista da campanha do ex-presidente americano Donald Trump, Steve Bannon, nomeou o brasileiro como representante sul-americano do The Movement, grupo criado para fortalecer a rede internacional da extrema direita.
Bolsonaristas vêm multiplicando suas agendas no exterior com esse objetivo. Em março, Eduardo desembarcou nos Estados Unidos com cerca de 20 parlamentares brasileiros para “denunciar a escalada do autoritarismo no Brasil” ao Comissão de Direitos Humanos do Congresso estadunidense. Eventos de bolsonaristas com lideranças internacionais têm se tornado mais comum.
Como plano de fundo desses ataques ao STF estão os processos a que Jair Bolsonaro (PL) responde na Justiça. O ex-presidente é investigado por suposta fraude em cartão de vacina, tentativa de golpe de Estado, venda de joias recebidas como presente ao país, a insurreição que depredou os prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, incitação ao crime na pandemia ao estimular que pessoas aglomerassem e não usassem máscara, vazamento de inquérito da Polícia Federal e interferência no órgão.