Salem Nasser: 30 mil mortos é o preço que os palestinos estão pagando para serem vistos, ouvidos e reconhecidos!

Salem Nasser: 30 mil mortos é o preço que os palestinos estão pagando para serem vistos, ouvidos e reconhecidos!

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Por Salem Nasser*, em Cegueira Seletiva

Eu escrevi antes sobre a “fadiga da compaixão” e sobre a nossa tendência natural a cansar do fluxo contínuo de notícias que são de difícil digestão.

A guerra contra Gaza está correndo há tanto tempo que, a despeito da gravidade da situação humanitária e dos crimes de Israel, as pessoas começam a cansar de ouvir falar dela.

Ao mesmo tempo, a gente se perde em meio a tantos detalhes; formar uma imagem abrangente do que está acontecendo se transforma em tarefa quase impossível.

Por essas razões, decidi oferecer minha leitura geral própria da guerra e colocá-la em contexto histórico.

Algumas das coisas que direi não podiam ser ditas antes desta guerra que já dura 130 dias, não sem que se pagasse preços pesados em termos de censura, perseguição e acusações.

Algumas coisas, mesmo que se ousasse dizê-las, não seriam ouvidas por conta dos muitos tipos de muros de proteção erigidos em torno de Israel para repelir as críticas.

Um modo de entender a essência dessa guerra é este: 30.000 mortos é o preço que os palestinos estão pagando para serem vistos, para serem ouvidos, para serem reconhecidos!

1- MUITO ANTES DE 7 DE OUTUBRO

Chegou o tempo de reconhecermos todos, em termos muito claros, que Israel é o resultado de um projeto colonial, mais especificamente um projeto de colonização de assentamento.

Essa conclusão resulta clara da história do movimento sionista e da sua aliança com os interesses imperiais britânicos.

Desde o começo, esse projeto muito específico de colonização de assentamento dependia da atração de imigrantes que pertencessem a uma religião particular para que viessem se assentar no território da Palestina histórica e da expulsão – ou da eliminação por outros meios – da população indígena.

Projetos de colonização de assentamento só foram “bem sucedidos” onde os recém-chegados mataram a maior parte dos habitantes originários e se tornaram a maioria numérica da população. Estados Unidos e Austrália são bons exemplos desse sucesso.

Onde quer que o esforço colonial não consegue ou não quer exterminar a população local, porque, por exemplo, precisa explorar a sua mão de obra, o projeto colonial fracassará em algum momento e os colonizadores se encontrarão diante da opção entre voltar para casa – para a metrópole – ou ficar e viver como uma minoria entre os habitantes originários.

A despeito de seus melhores esforços, e por várias razões, Israel não foi capaz, ainda, de expulsar ou eliminar a maior parte da população palestina.

Enquanto continua a empreender nesse sentido e em direção a esse objetivo, estabeleceu um sistema de Apartheid que, se a História de fato repete a si mesma, talvez determine o fracasso futuro do projeto colonial israelense.

2- IMEDIATAMENTE ANTES DO 7 DE OUTUBRO

Também por várias razões o mundo encampou esse projeto colonial tardio e anacrônico.

Praticamente todos os Estados que fazem parte do que se costuma chamar de “Comunidade Internacional” continuaram a falar, por décadas, da boca para fora, sobre a necessidade de proteger os direitos dos palestinos e sobre a solução dos dois Estados, enquanto Israel continuava livremente a limpar etnicamente a Palestina, aumentar seu domínio sobre territórios ocupados, segregar e discriminar, e violar direitos humanos e direito humanitário.

Esse processo duplo pelo qual, de um lado, progredia no sentido da total liquidação da Questão Palestina, enterrando para sempre a ideia de um Estado palestino e condenando os palestinos ao exílio ou à vida sob segregação, e, de outro lado, acumulava a cumplicidade e/ou o silêncio internacional e dos governos árabes, estava atingindo seu ponto máximo nos últimos poucos anos.

A construção de assentamentos na Cisjordânia e em torno de Jerusalém continuava, o sistema de Apartheid estava posto e era operacional, o bloqueio total a Gaza era contínuo e draconiano, as violações a lugares sagrados do Cristianismo e do Islã aumentavam.

Algumas instituições internacionais relatavam e denunciavam. Grandes ONGs de direitos humanos finalmente criaram a coragem de chamar o Apartheid israelense pelo seu nome. Mas ninguém ouvia ou queria ouvir.

A despeito do crescimento em força militar, claramente identificável, daqueles que na região se opõem ao projeto Israelense – e do Ocidente -, aquilo que se costuma chamar de Comunidade Internacional agia como se o projeto estivesse a caminho do sucesso final e que os resultados estavam dados.

Os que acreditavam em algo diferente eram o Hamas e outros grupos armados da resistência palestina, o Hezbollah no Líbano, Ansar Allah no Iêmen, grupos de resistência iraquianos, a Síria, o Irã, e talvez alguns outros mais.

O que quer que se pense que aconteceu no dia 7 de outubro – e o fato é que a maioria não sabe o que aconteceu de verdade – e como quer que se julgue o que se pensa que aconteceu, os ataques daquele dia decorreram da necessidade de interromper esse curso da história, e foi isso que operaram.

A História não começou no dia 7 de outubro. Ela mudou de curso nesse dia.

3- O QUE ACONTECEU NO DIA 7 DE OUTUBRO

Eu tenho dito que, de quem quer que queira criticar Israel pelos seus crimes contra a população de Gaza e contra os palestinos de modo geral, espera-se, no debate público, que pague um pedágio: fazer referência ao 7 de outubro e condenar o Hamas pelos crimes que teria cometido nesse dia.

E, então, se alguém se incomoda com perguntar e procurar, descobre que o que se sabe com certeza é muito diferente do que os israelenses dizem.

A segunda razão para eu pensar que o pedágio é abusivo é esta: na realidade, se você critica o Hamas pelo que teria feito naquele dia, as pessoas entenderão subconscientemente é que Israel tem suas razões para fazer o que faz; se, por outro lado, você tentar explicar ou justificar o comportamento do Hamas, você perde credibilidade porque se colocou do lado dos “terroristas”.

Finalmente, impor às pessoas a crítica ao Hamas por suas ações “contra os civis” é, ou uma estratégia para nos fazer esquecer o que Israel faz, e sempre fez antes do dia 7 de outubro, diariamente, contra civis palestinos, ou, pior, uma estratégia para nos fazer acreditar que o mal que se faz contra civis israelenses é mais merecedor de críticas do que o mal que se faz contra civis palestinos, porque alguns civis valeriam mais do que outros.

Mais do que as perdas civis e os presos levados, o que realmente assustou Israel e seus apoiadores ocidentais foi a percepção das fragilidades militares de Israel. O ataque do Hamas foi um feito militar e um fracasso enorme da parte de Israel.

A reação de Israel foi inspirada por dois desejos: operar uma vingança, do modo mais brutal, e reafirmar sua superioridade militar e sua capacidade de dissuadir seus inimigos.

A reação do Ocidente foi de correr para a proteção de Israel, que agora tinha se revelado mais frágil do que se poderia pensar.

4- DEPOIS DO 7 DE OUTUBRO

Muitos israelenses podem se sentir vingados pelos massacres contra crianças, mulheres e idosos… palestinos em Gaza, pela destruição das cidades e pelo deslocamento da população, e podem desejar mais do mesmo, mas a vingança não vale muito se não afeta o balanço de poder.

A verdadeira questão, portanto, diz respeito à situação da balança de poder depois do ataque de outubro e dos 130 dias de conflito que se seguiram.

O primeiro fato indiscutível, confirmado por esta guerra, é que Israel tem o poder de jogar bombas do céu e atirar projéteis de longas distâncias, do mar ou da terra, que são suficientes para destruir cidades inteiras e para matar pessoas aos milhares.

Essa capacidade é garantida pelo suprimento ilimitado de armas e munições por parte dos Estados Unidos e alguns outros.

Não obstante essa verdade, está claro agora que, enquanto essa capacidade militar consegue destruir e expulsar a população civil, ela não é suficiente para assegurar vitória contra uma resistência bem treinada, altamente motivada, que luta em seu próprio território.

Depois de ter hesitado, o exército israelense decidiu invadir Gaza por terra, porque de outro modo sua superioridade militar não seria reafirmada.

Os resultados até agora mostram que Israel não consegue vencer uma guerra que se luta em proximidade e que suas perdas são maiores do que pode suportar.

A resistência palestina está relativamente confiante com os resultados da guerra e pode até declarar vitória parcial. O seu ponto fraco, no entanto, é o sofrimento da população civil.

Israel, por outro lado, não conseguindo ferir significativamente a resistência, aumenta suas apostas no ataque aos civis.

A despeito do silêncio da grande mídia, da cumplicidade de países ocidentais e da paralisia vergonhosa dos países árabes, a realidade da trágica situação humanitária veio a ser conhecida pelo mundo todo.

Os crimes de Israel que ninguém parecia poder ver ou ouvir vão se tornando visíveis! E a imagem que se revela é muito feia.

Enquanto escrevo, Israel parece decidido a atacar Rafah, onde 80% da população de Gaza buscou seu último refúgio, e a expulsar os palestinos em direção ao Egito.

Não é certo que consiga realizar isso, mas muitos em Israel veriam nisso uma vitória e um passo em direção ao estabelecimento do Grande Israel.

Até agora, não obstante os discursos politicamente corretos sobre direito humanitário e sobre preservar as vidas de civis, o Establishment ocidental está dando a Israel o tempo para tentar realizar algum tipo de vitória.

Ao mesmo tempo, esforços são empreendidos para trazer de volta do mundo dos mortos a ideia da solução dos dois Estados – apenas a ideia, não a coisa em si – para parar a guerra, convencer a Arábia Saudita a normalizar relações com Israel, e salvar Israel da derrota que sofreu no dia 7 de outubro e desde então.

*Salem Nasser/Viomundo

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