A crescente aglomeração agravou surtos de doenças como a sarna e a disseminação de piolhos, já que não é possível manter padrões básicos de higiene.
Rafah já era uma cidade empobrecida, até mesmo para os padrões da Faixa de Gaza, e abrigava 250 mil pessoas antes da guerra entre Israel e o Hamas em seus 65 km². Na semana passada, o escritório de direitos humanos da ONU (OHCHR, na sigla em inglês) em Gaza informou que 1,3 milhão de pessoas — mais da metade da população de 2,3 milhões do enclave — já se deslocaram para a cidade na fronteira com o Egito, aonde Israel sinaliza que estenderá sua operação terrestre.
Gaza é um dos locais mais densamente povoados do planeta. Desde 7 de outubro de 2023, quando o Hamas invadiu o sul de Israel, causando 1,2 mil mortes e fazendo outras 240 pessoas de reféns, os bombardeios de retaliação e a campanha terrestre de Israel — que já deixaram mais de 27 mil mortos, segundo o Ministério de Saúde local — forçaram os palestinos a se deslocar para o sul de Gaza.
Segundo a ONU, 1,7 milhão de pessoas deixaram suas casas, muitas delas apenas com a roupa do corpo, provocando uma grave superlotação em locais como Khan Younis, cenário atual de intensos combates, e Rafah, que fica a menos de 10 km de distância. Sem deixar claro como Israel agiria para garantir a segurança dos civis na cidade, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, sugeriu haver planos de avançar sobre a área.
— Estamos completando nossas missões em Khan Younis e vamos alcançar Rafah e eliminar os elementos que nos ameaçam — disse Gallant enquanto visitava soldados em Khan Younis, segundo gravação distribuída por seu gabinete. — Essa guerra requer resiliência e determinação nacionais, e precisamos perseverar até completar nossas missões.
Não ficou claro se os comentários de Gallant refletiram um objetivo militar imediato ou tiveram a intenção de mostrar determinação para o público israelense e o Hamas enquanto se aguarda uma resposta final para um esboço de proposta de cessar-fogo e a libertação de mais reféns — como no cessar-fogo temporário de novembro, com a libertação de mais de 100 reféns.
Além de Rafah sofrer uma severa falta de alimentos, de água e remédios, a crescente aglomeração de pessoas agravou surtos de doenças como a sarna e a disseminação de piolhos, já que muitos não conseguem manter padrões básicos de higiene — milhares de pessoas têm de partilhar poucos chuveiros e banheiros.
— Nossos números mais recentes mostram que há um chuveiro para cada 2 mil pessoas e um banheiro para cada 500 — disse Tamara Alrifai, chefe de comunicações da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados do Oriente Médio (UNRWA, na sigla em inglês).
Além de administrar clínicas e escolas que prestam assistência aos palestinos no enclave, a UNRWA também fornece alimentos, saneamento e serviços de dessalinização. Mas, desde a semana passada, a agência enfrenta cortes de financiamento depois de Israel acusar 12 de seus funcionários de participar do ataque de 7 de outubro, o pior em território israelense desde a formação do Estado judeu, em 1948. A ONU lançou uma investigação sobre as acusações, e o chefe da agência, Philippe Lazzarini, descreveu os cortes de financiamento como “chocantes”, com risco de impactar ainda mais a assistência em uma área já sob pressão.
Jens Laerke, porta-voz do Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários, disse que a agência estava profundamente preocupada sobre a escalada de combates em Khan Younis e o crescente deslocamento de moradores de Gaza fugindo para Rafah.
— Rafah é uma panela de pressão de desespero, e tememos pelo que vem a seguir — disse Laerke a journalistas em Genebra nesta sexta-feira. — Toda semana, pensamos que não pode piorar. Bem, mas fica pior.
Haneen Harara, funcionária de uma instituição de caridade holandesa, fugiu para Rafah em semanas recentes. Quando chegou, 15 de seus parentes estavam em um único quarto.
— Mães, pais, seus filhos, e um único banheiro. Sob as atuais circunstâncias, ter um quarto era achar que as coisas iam bem — disse ao jornal britânico Guardian. — Depois de cinco dias, tivemos de deixar o local por nos sentirmos em risco por fortes bombardeios. Meu pai começou a buscar um novo abrigo, uma nova casa, qualquer coisa para escapar dos ataques. Nenhum lugar é seguro em Gaza.
Por fim, conseguiram chegar à casa de amigos da família, que lhes ofereceram um lugar para ficar. Harara ficou aliviada, embora a situação na cidade continue piorando. Além de filas de horas para obter comida e água, a superlotação leva à rápida propagação de doenças, com as autoridades de saúde relatando a disseminação de um surto de hepatite A, enfermidade que se espalha pelo contato próximo.
— O primeiro passo para impedir o contágio é isolar o paciente, mas isso não é fisicamente possível — disse Alrifai, da UNRWA. — Em abrigos superlotados ou acampamentos improvisados, o isolamento não é uma opção.
O médico John Kahler, da organização MedGlobal, administrava uma clínica em Rafah antes de deixar o território na semana passada. Ele contou ao Guardian ter testemunhado multidões de até 700 pessoas pedindo ajuda do lado de fora de onde trabalhava. Também estimou que só conseguia tratar cerca de 140 crianças diariamente — uma pequena fração das que necessitam.
Ele conta que seu escritório ficava ao longo de estrada da praia no oeste de Gaza. Quando chegou, havia na área barracas montadas, mas com bastante espaço aberto entre elas. Quando partiu, relata, não havia nenhum metro quadrado disponível para montar uma barraca.
— Fileiras e mais fileiras de pessoas entravam desesperadas em carroças carregadas até as alturas puxadas por burros — relatou. — Foi de partir o coração. Vi pessoas olhando para um depósito de lixo tentando descobrir se conseguiam abrir espaço para montar uma barraca para uma família de seis pessoas.
Nesta sexta-feira, fortes chuvas inundaram as barracas e as lonas de plástico que se multiplicam por todas as ruas da cidade, segundo imagens da AFP.