Em 30 de setembro de 2023, o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, proferiu uma declaração otimista sobre a situação no Médio Oriente, afirmando que “o Médio Oriente está hoje mais calmo do que esteve em duas décadas”.
No entanto, esta tranquilidade foi abruptamente interrompida oito dias depois, quando ataques terroristas atribuídos ao Hamas desestabilizaram profundamente a região, reacendendo preocupações globais sobre a questão palestiniana e desafiando a segurança percebida de Israel.
Apesar dos recentes acontecimentos, alguns desenvolvimentos positivos na região não podem ser ignorados. Houve avanços significativos nas relações entre o Irão e os Estados do Golfo, com uma notável mediação da China entre Riade e Teerão.
Em resumo, o Médio Oriente encontra-se numa encruzilhada crítica, onde os esforços diplomáticos e as tensões militares coexistem precariamente.
A evolução dos acontecimentos em Gaza e a potencial escalada de conflitos com o Hezbollah no Líbano são indicativos de um ano de 2024 que pode ser marcado por desafios significativos na região.
Leia a íntegra da análise do Eurasia Group!
Em 30 de Setembro de 2023, o Conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan disse que “o Médio Oriente está hoje mais calmo do que esteve em duas décadas”. Ele azarou.
Apenas oito dias depois, os ataques terroristas do Hamas abalaram a região no seu âmago, arrancando o mundo da sua complacência relativamente à questão palestiniana, destruindo o sentimento de segurança de Israel e transformando o Médio Oriente num barril de pólvora.
Na verdade, ainda há muita verdade na afirmação de Sullivan: o Irão e os Estados do Golfo estão mais próximos que estiveram em anos, graças ao avanço mediado pela China entre Riade e Teerão. O Qatar e o Conselho de Cooperação do Golfo resolveram os seus problemas.
O cessar-fogo no Iémen mantém-se. A Síria está de volta ao circuito diplomático. Os Acordos de Abraham continuam em vigor. E ainda assim… toda a gente se esqueceu dos palestinianos.
Agora, uma coisa é certa: a região não está mais tranquila e não estará por muito tempo. Existe uma rede de relações de dissuasão – Israel e os EUA, por um lado, o Irão e os seus representantes, por outro, e os estados do Golfo no meio – que até agora tem contido a guerra em Gaza… apenas.
Nenhum país quer que ecloda uma guerra regional. Mas a pólvora está seca e o número de jogadores carregando partidas aumenta o risco de escalada. Os actuais combates em Gaza serão, portanto, provavelmente apenas a primeira fase de um conflito em expansão em 2024.
Um caminho para a escalada seria a decisão de Israel de atacar o Hezbollah. A postura de segurança de Israel pós-7 de Outubro é definida por um compromisso de restaurar a dissuasão regional e de abordar riscos de segurança de longa data, com uma tendência para prevenir ameaças antes que estas se materializem.
Os principais líderes israelitas comprometeram-se a “remover” a ameaça do Hezbollah na sua fronteira norte, e o gabinete de guerra está a debater uma operação para empurrar o grupo militante para além do rio Litani, no sul do Líbano, conforme exigido pela Resolução 1701 do Conselho de Segurança da ONU. levar a um confronto com o Hezbollah.
O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, tem as suas próprias razões para manter a campanha em Gaza ou iniciar outra no norte: evitar a destituição e uma possível pena de prisão (ver caixa no Top Risk #5).
Se Israel atacasse preventivamente, provavelmente esperaria para o fazer até depois do declínio dos combates em Gaza, para evitar uma guerra plena em duas frentes (as retiradas iniciais de algumas tropas israelitas de Gaza deveriam ser avaliadas em conformidade).
É quase certo que os militares dos EUA dariam apoio ao esforço israelita. O Irão, por sua vez, ajudaria o Hezbollah, o elo mais importante na estratégia de projecção de poder de Teerão no Levante. Uma espiral de escalada poderia transformar a guerra paralela entre os EUA/Israel e o Irão numa guerra cinética.
Uma espiral semelhante poderia ser iniciada pelo Hezbollah com o apoio do Irão se o seu líder, Hassan Nasrallah, pensasse que o nível de baixas palestinianas em Gaza – ou na Cisjordânia – se tinha tornado intoleravelmente elevado.
E se o Irão acreditasse que o Hezbollah corria o risco de ser degradado existencialmente, o seu nível de apoio ao grupo aumentaria.
Os militantes Houthi também estão a seguir um caminho de escalada. Os antigos rebeldes baseados no Iémen possuem um formidável arsenal de armas fornecido pelo Irão e estão ansiosos por reforçar a sua posição em casa e dentro da “Frente de Resistência” apoiada por Teerão. Têm uma rédea mais longa – mas também menos protecção – de Teerão do que outros representantes regionais do Irão, e aceitam mais riscos.
Os Houthis têm lançado ataques com mísseis e drones contra Israel, navios de guerra dos EUA e embarcações comerciais desde novembro, ameaçando a passagem segura através do Estreito de Bab al Mandab e do Golfo de Aden – principais vias navegáveis de trânsito de petróleo e mercadorias para a Europa, América do Norte. e Ásia.
Em resposta, os EUA formaram uma força-tarefa naval multinacional para proteger a navegação e dissuadir os Houthis. Mas o grupo iemenita permanecerá implacável e continuará a disparar.
Ao fazê-lo, poderia matar inadvertidamente cidadãos dos EUA, o que exigiria uma resposta mais forte de Washington.
Se os Houthis continuarem nesta via, os ataques nas suas bases no Iémen serão cada vez mais prováveis, trazendo os Estados Unidos e os seus aliados mais directamente para a guerra.
Finalmente, as milícias xiitas que operam no Iraque e na Síria aumentaram sistematicamente os seus ataques às bases dos EUA, com a bênção de Teerão, mas pelo menos parcialmente impulsionadas pela dinâmica política local.
Estes ataques são difíceis de impedir e a possibilidade de consequências não intencionais está a aumentar em conformidade. Os riscos associados às baixas nos EUA são particularmente graves. Washington deixou claro que qualquer morte dos EUA conduzirá a retaliações em grande escala e que o Irão será diretamente responsabilizado.
Todos estes caminhos representam riscos para a economia global. A maioria das maiores companhias marítimas do mundo já suspendeu o trânsito através do Mar Vermelho em resposta aos ataques Houthi, paralisando uma via navegável crítica que atravessa 12% do comércio global.
Os ataques contínuos dos Houthi manterão elevadas as taxas de seguro de frete, perturbarão as cadeias de abastecimento globais e criarão pressão inflacionária.
Além disso, quanto mais próximo o conflito estiver do Irão, maior será o risco de perturbações nos fluxos de petróleo tanto no Mar Vermelho como no Golfo Pérsico, empurrando os preços do petróleo para cima.
Quaisquer medidas de Israel, dos EUA ou de outros países para bloquear as exportações de petróleo de 1,4 milhões de barris por dia do Irão através de sanções ou ataques militares provocariam retaliação por parte de Teerão, o que colocaria em risco maiores volumes de exportações de petróleo e GNL da região (embora o pior seja: cenário, o encerramento do Estreito de Ormuz, continua a ser uma probabilidade muito baixa).
O conflito também ampliará as divisões globais existentes e perturbará a política. O sentimento anti-Israel está inflamado em todo o Médio Oriente, entre as populações muçulmanas em todo o mundo e – cada vez mais – no Sul Global.
Os Estados Unidos estão actualmente tão isolados globalmente no seu apoio a Israel como a Rússia estava na invasão da Ucrânia. À medida que a guerra em Gaza se prolonga, o cisma entre Washington e o resto do mundo aumentará.
As divisões também se aprofundarão nos EUA, onde a opinião pública sobre Israel-Palestina está a mudar de acordo com a demografia do país. A maioria dos membros da Geração Z vê agora os ataques de 7 de Outubro – a pior violência contra os judeus desde o Holocausto – como justificados.
O descontentamento entre os jovens americanos, as minorias e os progressistas com o apoio firme do presidente Joe Biden a Israel prejudicará os democratas nas eleições de 2024.
O cisma mais perigoso, porém, permanece entre israelitas e palestinianos. Os israelitas de todo o espectro político apoiam esmagadoramente a destruição completa do Hamas, seja lá o que isso signifique e por mais improvável que seja.
Entretanto, uma maioria crescente de palestinianos na Cisjordânia e em Gaza apoia o Hamas. Continuam a ser possíveis cessar-fogo mais temporários para os actuais combates em Gaza, especialmente tendo em conta a forte pressão internacional que está por trás deles… mas é extremamente improvável que sejam sustentados.
Quanto mais a guerra durar, mais ambas as populações se radicalizarão. Isto aumentará o risco de insurgência em Gaza, de confrontos mortais na Cisjordânia e em Jerusalém e de ataques terroristas em Israel que provocam uma nova resposta militar.
Escusado será dizer que a expansão da violência israelo-palestiniana torna cada vez mais obscuras as perspectivas de uma eventual solução de dois Estados.
Por último, e talvez o mais preocupante, este conflito irá alimentar o extremismo político e religioso em todo o Médio Oriente e noutros locais.
Podem surgir manifestações em países árabes e muçulmanos à medida que as forças israelitas matam ou deslocam um maior número de civis palestinianos em Gaza, ou em resposta à violência e à repressão dos colonos na Cisjordânia e em Jerusalém.
Estas convulsões poderão desestabilizar países com grandes populações de refugiados palestinianos, como o Egipto e a Jordânia, e – em casos extremos – forçar os seus governos a cortar laços com Israel.
Durante todo o tempo, os grupos terroristas islâmicos utilizarão imagens e números de vítimas de Gaza como ferramentas de propaganda e recrutamento, e a violência contra os judeus aumentará em muitos países. A violência fatal ligada à guerra já atingiu a Europa e os Estados Unidos também estão vulneráveis.