A democracia brasileira não vai à praia, por Luiz Eduardo Soares

A democracia brasileira não vai à praia, por Luiz Eduardo Soares

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Cláudio Castro confrontou princípio da Constituição, a equidade no acesso a bem público – ele criou a anti-cota ou a cota para a exclusão.

Li com perplexidade e indignação a entrevista ao Globo do governador do estado do Rio, Claudio Castro, publicada em 16 de dezembro de 2023: “Estamos pegando menores que estão desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando para que a gente faça a pesquisa social deles. Não há nada de mais nisso, não há cerceamento na praia. Quer ir à praia, leve seu documento, vá
com seu responsável, você vai poder curtir a praia numa boa.”

A quem se dirige a ordem do governador, a qual condiciona o acesso à praia de menores de 18 anos à apresentação de documentos e à presença de responsáveis? A frase é muito clara: dirige-se a todos que desejem ir à praia. Entretanto, nenhuma informação suplementa a ordem. Claudio Castro não diz, e estranhamente o repórter não pergunta, como agentes do Estado montarão guarda nos calçadões para verificar documentos e atestar a presença de responsáveis, os quais, por sua vez, seriam identificados a partir de quais critérios? Todo o efetivo da PM seria mobilizado? Muros seriam erguidos com catracas e guichês? A medida seria aplicável a todas as praias fluminenses? Quantos recursos materiais, humanos
e financeiros seriam investidos? Quais bases legais sustentariam a iniciativa? As prefeituras das cidades envolvidas haviam sido consultadas? Disponibilizariam guardas municipais e outros funcionários públicos para viabilizar o controle previsto na ordem do governador? Quais, exatamente, as faixas etárias alcançadas pela ordem restritiva? A questão em pauta é, realmente, o acesso à praia ou se estende aos bairros contíguos ao litoral? Jovens podem visitar livremente esses bairros? Quaisquer bairros? Ou haveria também condicionantes restritivos à circulação que não envolvesse as praias?

Não, nada disso: o que a estrutura lógica e gramatical da frase indica no plano semântico (a ordem é universal, dirigida a quem reside no estado do Rio) inverte-se no subtexto (a ordem se dirige a alguns e algumas, não elencados, explicitamente, mas subentendidos -não há dúvidas sobre quem são). Por outro lado, o acesso em tela de juízo não corresponde à chegada à praia, mas ao deslocamento cujo destino
seja a praia -deslocamento que seria interceptado na origem ou em algum ponto do itinerário. Acesso pode ser concebido como um bem (a ser potencialmente usufruído -sendo comum, o benefício individual não reduz seu potencial de fruição), um direito (a ser exercido), uma possibilidade (física, material, desde que haja cidadãos e o bem de que trata o acesso, no caso, a praia) ou um ato (estar na praia,
aproveitar o que ela oferece, o que pressupõe tê-la alcançado, ter chegado a ela) e
um fato (a praia ocupada).

As ações policiais que constituem a referência implícita da declaração de Castro ocorrem no trajeto dos ônibus que transportam para a Zona Sul, nos fins de semana, moradores das áreas mais pobres da cidade e da região metropolitana. É nessas abordagens policiais que a triagem se faz. Os escolhidos são recolhidos a abrigos onde aguardam averiguações até o anoitecer -digo escolhidos porque não caberia aqui a categoria suspeitos, pois sequer há crimes em marcha, em preparação, ou indícios de organização para seu cometimento– e ainda não contamos com a antecipação paranormal dos investigadores de Minority report -o filme de Steven Spielberg, inspirado no conto de Philip K. Dick. Percebam: ao anoitecer, usualmente, esgota-se o prazo de validade da praia como espaço de diversão. Portanto, Castro reconhece que a pena -sim, pena sem crime, sem acusação- aplicada aos jovens antecede e independe do resultado das tais “pesquisas sociais”. Voltemos à sua declaração: “Estamos pegando menores que estão desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando para que a gente faça a pesquisa social deles.”

A frase do governador é maliciosamente elíptica, sob a forma do discurso universal: em primeiro lugar, sob aparência de uma relação diádica (emissor, o governador, e receptor, a audiência universal pela mediação do repórter e, portando, do jornal), estipula, na prática, uma relação triangular, ao operar uma
distinção entre dois tipos de receptores: aqueles a quem realmente a ordem é dirigida e os demais, não visados pelas restrições, que apenas testemunham o ato de fala governamental e cujo silêncio obsequioso (o repórter cala as interrogações cruciais) confirma, simbolicamente, a legitimidade e a autoridade do comunicado emitido. Observe como a ironia mal dissimulada mascara a duplicação dos tipos de receptores: “Quer ir à praia, leve seu documento, vá com seu responsável, você vai poder curtir a praia numa boa.” Você remete a quem jamais se exigirá documentos ou o acompanhamento de responsáveis e, simultaneamente, a quem será alvo da exigência. A superposição mal disfarça o facciosismo e o enviesamento da ordem do governador sob a evocação do interlocutor universal.

Em segundo lugar, o discurso é inquietantemente elíptico e dissimulado. Cito, novamente: “Estamos pegando menores (…) e levando (…) Não há nada de mais nisso, não há cerceamento na praia.” Não, nenhum cerceamento na praia, de fato. Na praia temos atos (modalidades ativas do estar naquele local) e fatos (a ocupação da praia) tautologicamente comprobatórios da presença, presença que é o avesso da exclusão. Sendo assim, o acesso como um bem não foi negado, enquanto fato, ato ou possibilidade (uma vez que quem não estivesse na praia poderia, em princípio, lá estar -ninguém, em princípio, estaria impedido de exibir documentos e fazer-se acompanhar de responsável -e o caráter discriminatório da aplicação das exigências não macularia a afirmação do acesso como possibilidade universal). Daí se deduziria que o direito fora preservado, o acesso como direito permaneceria respeitado, protegido, tutelado, garantido. O pulo do gato violador está justamente na confusão intencional e ardilosa entre acesso como direito abstrato (correspondente ao não cancelamento da possibilidade de fruir) e direito objetivo (correspondente à sustentação da equidade na distribuição das condições efetivas de experimentar a possibilidade). Ninguém, no Brasil, está impedido, em princípio, de beneficiar-se da educação pública, ou seja, o acesso à educação, do primeiro ao terceiro graus, é possível -e esta possibilidade é um bem precioso tutelado pelas autoridades responsáveis (do MP ao Executivo, passando pela Defensoria e a Justiça). No entanto, há políticas afirmativas, como as cotas, e elas foram consideradas constitucionais pela Suprema Corte, em decisão unânime. Para que servem as cotas? Reduzir a iniquidade que se verifica, concretamente, na distribuição das condições em que os grupos sociais experimentam a possibilidade.

O governador do Rio está introduzindo fatores que reduzem a equidade na distribuição das condições efetivas de vivenciar a possibilidade. Sua decisão confronta princípio axial da Constituição, a equidade no acesso a bem público -ele criou a anti-cota ou a cota para a exclusão. Trata-se de um experimento perverso na linha do apartheid, com aspectos sociais e raciais.

Confesso que as palavras do governador produziram em mim um efeito devastador: se não há mais nenhum limite, nenhum pudor, se o cinismo pode se expor sem pejo, se a racionalidade não é mais parâmetro para argumentos, se o discurso da autoridade máxima do Executivo pode sacrificar qualquer compromisso com o respeito à inteligência dos interlocutores, o que esperar dos cidadãos que o escutam? O pacto que estabelece as condições mínimas para o diálogo no espaço público democrático estava rompido, unilateralmente. No vácuo, prosperam o negacionismo e o niilismo, venenos corrosivos, armas de destruição em massa daquilo que, um dia, com boas intenções (embora, idealistas), foi chamado senso comum: o consenso mínimo indispensável à vida em comum, substrato que não impede as diferenças, ao contrário, as torna possíveis e lhes dá sentido. O governador atirou no que viu e atingiu o que não viu: alvejou a crítica do MP às ações policiais e implodiu os alicerces inter-subjetivos da linguagem e da cultura. Castro declarou guerra (sem quartel e bandeiras, a guerra hobbesiana pela subordinação do sentido à força, a guerra de todos contra todos) ao minar o campo do mútuo entendimento, ao implodir o discurso como espaço público da argumentação racional. E, como disse Shakespeare: quando falta a linguagem, prevalece a violência.

Minha perplexidade se agravou ante o posicionamento do TJRJ.

A manifestação do governador foi apoiada pelo presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Ricardo Rodrigues, que, conforme O Globo, em 16 de dezembro de 2023, “revogou (…), neste sábado, a liminar concedida pela juíza Lysya Maria da Rocha Mesquita, titular da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital. Nela, a magistrada determinou que o governo do estado e a prefeitura se abstenham de apreender ou conduzir crianças e adolescentes a delegacias ou a unidades de acolhimento, a não ser quando flagrados cometendo crimes. A medida fazia parte de ações preventivas da Operação Verão que reforça a segurança nas praias do Rio (sic).” Segue a reportagem: “O presidente do TJRJ também considerou que os casos de encaminhamento de adolescentes abordados à instituição de acolhimento não violam seu direito de ir e vir (…) A ação foi movida pelo Ministério Público que questionou a motivação das abordagens. O MP afirmou que, nos dias 25, 26, 29 e 30 de novembro e 2 e 3 de dezembro, a Operação Verão encaminhou 89 adolescentes para a Central de Recepção Adhemar Ferreira de Oliveira (Central Carioca), na Cidade Nova, após abordagem de agentes de segurança. Esses jovens, de acordo com a Promotoria, relataram que foram levados sem qualquer explicação e que a equipe técnica constatou motivo para o acolhimento de apenas um deles.”

Mas a escalada de ataques à equidade prosseguiu. O principal órgão de imprensa fluminense, O Globo, defendeu, em editorial, no dia 21 de dezembro, a decisão do governador e as ações policiais. Referindo-se aos princípios constitucionais e aos limites legais, o texto ponderava: “Todos esses aspectos devem ser levados em conta. Mas não se pode perder a noção da realidade.”

De que realidade se trata? A violência dos assaltos que vêm assustando sobretudo os moradores de Copacabana. Essa violência é real, é repulsiva, deve ser repelida, contida e previnida. Mas há outra realidade: a violação dos direitos de adolescentes negros e pobres, a humilhação arbitrária, a violência do bloqueio à livre circulação e da subjugação discriminatória -eles pagam não por crimes que perpetraram, mas porque têm a mesma cor e origem social de alguns dos perpetradores; eles pagam para que governo e polícias prestem contas a quem, com razão, cobra punição e controle, e ocupam o lugar dos verdadeiros culpados, que a polícia não identificou e não prendeu. Eles pagam pela incompetência das polícias.

Se há duas realidades a considerar, elas não são equivalentes e uma não serve para justificar a outra, porque deter aleatoriamente não constitui política de segurança, a violação racista da equidade não garante a segurança em Copacabana.

 

 

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