Uma mulher que agradece a Deus por não ter um filho autista não pode ter representatividade política.
m conversa com uma figura que transita com facilidade e frequência no mundo empresarial e político brasileiro, já tendo, inclusive, estado pessoalmente com ela durante um jantar de negócios, ouvi a seguinte colocação sobre Michelle Bolsonaro: “Ela tem uma energia dominadora, uma oratória de pastora. O marido não é ninguém perto dela. Ela é capaz de fazer qualquer coisa para conseguir o que quer”. Por uma questão de ética, uma vez que a nossa conversa foi em “off”, vou declinar de revelar o nome da minha interlocutora, mas posso lhes garantir que a observação não teve a intenção de ser elogiosa. Pelo contrário, revelava um certo temor com relação ao futuro aproveitamento político da ex-primeira dama desta república bananeira e cada vez mais contaminada pelo discurso neopentecostal. Michelle é a nova Eva do paraíso evangélico que pretende se instalar no país, através da qual o fruto da dissimulação será oferecido ao povo como fonte de libertação e o pecado da perversidade será transformado em virtude.
Apesar de ser mais esperta do que a maioria, principalmente da esquerda, possa supor, Michelle se deixa trair por lapsos verbais que revelam a sua verdadeira essência. Como na ocasião em que obrigou a deputada Amália Barros a retirar a sua prótese ocular para satisfazer o seu sadismo, sob a alegação não menos sádica, de que “amava” ver a sua correligionária do PL sem o olho. Uma clara demonstração de regozijo com a dor do outro. Ou quem mais amaria e sentiria prazer em ver alguém sem um olho? Mais recentemente, a profetisa do inferno neopentecostal brasileiro cometeu mais um de seus lapsos. Dessa vez, o alvo foram os autistas. Durante um evento do PL Mulher no Espírito Santo, Michelle inicia sua fala dizendo que abriu mão de um período sabático após quatro anos de trabalhos incansáveis, ressignificando o papel de primeira dama – Me permitam uma pausa para gargalhadas – porque ela sempre teve vocação para o trabalho e para o voluntariado, para lutar pela recuperação da nação. Entenda-se: lançar-se como um quadro político.
O media training evangélico de Michelle se funde de tal maneira com o seu maquiavelismo pessoal, que ela bate no peito cada vez que exalta algo em si mesmo, para reafirmar, ainda que esse algo não exista em si, a sua superioridade diante dos presentes. Uma superioridade que ela impõe sob uma falsa humildade característica de boa parte dos líderes do seu segmento religioso, para instar os ouvintes a creditá-la como alguém digna de confiança. Afinal, parafraseando o Imperador romano Júlio César, a mulher de Bolsonaro não basta ser desonesta, tem que parecer honesta. E Michelle parece. Assim como toda a casta neopentecostal que se esconde atrás da “palavra de Deus” para tirar o máximo proveito de suas dóceis e manipuláveis ovelhas. O que Michelle oferece em seu storytelling não é nenhuma novidade, mas ela sabe que a repetição é que leva à absorção. E no caso das mentiras que ela propaga, o parecer honesta para torná-las críveis é mais do que fundamental.
E lá vai Michelle, revestida de mulher virtuosa e cheia de bondade no coração, convocar mais uma guerra do “bem contra o mal”, deixando a maldade que há dentro dela escapar em seu discurso, para a alegria das mentes distópicas que a seguem. Quando Michelle diz: “eu agradeço a Deus todos os dias, porque eu não precisei passar por nenhum problema. Eu não tenho um filho autista, eu não fui abusada sexualmente, eu não passei por violência doméstica”, ela mais uma vez está se colocando em condição de superioridade às demais mulheres, sob a égide da graça de Deus em sua vida. Como se uma mulher que é mãe de uma criança autista ou que tenha sofrido violência sexual e doméstica não fosse abençoada por Deus e ela possa ser enxergada como exemplo de merecimento divino. Além, é claro, de ser subliminarmente perversa ao ponto de relacionar autismo com abuso sexual e violência doméstica.
As entrelinhas de Michelle são sordidamente calculadas para o seu endeusamento pessoal e para aumentar o brilho de sua imagem. É a mulher que dobra os joelhos e clama a Deus pelo país, é a esposa sábia que edifica o lar e a vida do marido escolhido por Deus para governar a nação, é a mãe agraciada com filhos “perfeitos” e sem nenhum problema, é o estereótipo da feminilidade instituída por Deus para as mulheres, é a incansável trabalhadora da luz que luta para que o mal não prevaleça, e, finalmente, é a mulher perfeita para governar o país em nome de Deus, da família e dos bons costumes. Se o diabo de fato existir, eu diria que ele é o seu media training. Como disse o jornalista e diretor-presidente do Brasil 247, Leonardo Attuch, no Bom dia 247 deste domingo, “é uma gigantesca irresponsabilidade da classe dominante brasileira, considerar a Michelle como uma hipótese política”. É um alerta para o possível novo projeto de destruição do país, sobretudo, das minorias representativas, a ser engendrado pela elite do atraso.
No mesmo evento em que Michelle agradece a Deus por não ter um filho autistas, ela reforça o seu ódio pelas diferenças e classifica as feministas como mulheres com “estereótipos estranhos” que se opõem a naturalidade feminina que Deus deu a ela e as suas colegas de partido, as quais ela considera como “princesas do senhor” e, por isso, serão “amadas de seus maridos”. Michelle também conceituou as mulheres como “ajudadoras”, uma categoria da qual ela também é o exemplo a ser seguido. O que deixa claro quando cutuca Janja, dizendo que a atual primeira-dama tenta imitá-la quando vai comprar uma gravata para o presidente Lula ou se coloca ao seu lado durante um pronunciamento passando bilhetinhos com o que ele deve falar. Como se Lula fosse um idiota igual a Bolsonaro, que mal consegue ler um teleprompter com um texto de três frases. Caso entre na política, e não difícil que aconteça, Michelle terá um poder destruidor poucas vezes visto no Brasil. Lembram do que a minha fonte disse, de que Bolsonaro perto dela não é ninguém?
Todo o sucesso do atual projeto de governo de Lula, que recuperou a credibilidade do país com a sua imagem de estadista, atraindo investidores internacionais para o Brasil e nos devolvendo o protagonismo econômico global que ele mesmo tinha conseguido em seus dois governos anteriores, volta a ser combatido pela pauta moral e de costumes que Michelle e o evangelistão representam. Um grupo que prefere ver pessoas excluídas, marginalizadas e morrendo de fome, em nome de um deus fascista que elas criaram para estabelecer o seu projeto de poder. Michelle é perigosa e tem pretensões inimagináveis em sua mente soturna, na sua vivacidade sombria e na sua virtuosidade hipócrita. A morte mora ao lado de suas aspirações e não podemos cogitar a possibilidade de sermos vizinhos desse mal e de voltar a habitar um país que promete o paraíso, mas oferece o inferno como salvação.
*Ricardo Nêggo Tom/247