Após anos de cerco à Faixa de Gaza, ataque palestino contra Israel não foi inesperado

Após anos de cerco à Faixa de Gaza, ataque palestino contra Israel não foi inesperado

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Mais de 2 milhões de pessoas no território não têm liberdade de movimento nem acesso a itens básicos.

Não dá para dizer que os ataques do Hamas ao sul de Israel neste sábado (7) foram inesperados. Palestinos têm dito há anos que a situação na Faixa de Gaza era insustentável, que um dia ia explodir —como explodiu.

Hamas e Israel vão travar um embate físico, de tanques e foguetes, mas vão se enfrentar também na arena pública nos próximos dias. Vão tentar convencer o mundo da justiça e da legalidade das suas ações. Nosso desafio é enxergar através da névoa da guerra. A perspectiva histórica ajuda nessas horas.

A Faixa de Gaza abriga diversas comunidades palestinas expulsas de suas terras em 1948, data da criação do Estado de Israel e do embate com seus vizinhos árabes. Herdaram um trauma. Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou a faixa. Manteve colônias ali até a sua retirada unilateral em 2005. O território foi tomado em seguida pela facção radical Hamas, que controla Gaza desde então.

O Hamas governa Gaza de maneira autoritária e impõe costumes conservadores à população. Sua liderança se descreve como uma força de resistência. Está em constante atrito com a facção rival, o Fatah, que administra a Cisjordânia. Os laços do Hamas com o eixo iraniano preocupam Israel, em especial.

Com a justificativa de sua segurança, Israel mantém um bloqueio terrestre, aéreo e naval à faixa. É uma forma de ocupação indireta. Palestinos dizem, portanto, que vivem na maior prisão a céu aberto do mundo. São mais de 2 milhões de pessoas instaladas em um território de 365 quilômetros quadrados –um quarto da área do município de São Paulo. Uma das maiores densidades populacionais do mundo.

Moradores de Gaza não têm liberdade de movimento nem acesso garantido a coisas como eletricidade, água potável, remédios e material de construção. Governada por um grupo extremista, uma geração de jovens cresceu odiando as pessoas do outro lado do muro. O Hamas lançou nos últimos anos saraivadas de foguetes contra civis israelenses na fronteira. Israel respondeu com bombardeios, debilitando a infraestrutura local.

Na guerra de 2014, que eu cobri para esta Folha, vi em Gaza algumas cenas mais desoladoras da minha carreira. Entre elas, prédios residenciais transformados em crateras, destruindo famílias inteiras. Entre disparos israelenses vindos da terra, do ar e do mar, palestinos não tinham para onde fugir. É o tipo de memória que persiste por ali e que é instrumentalizada pelo Hamas em dias como hoje.

Desconfie, portanto, das análises dizendo que essa guerra é inesperada. O ataque do Hamas pode ter tomado o governo de Israel de surpresa —o que sinaliza um fiasco histórico de inteligência (e também de bom senso). Mas não é um evento inesperado. É um lembrete do risco de manter um status quo injusto, uma lição que vale para outros governos no mundo.

Os palestinos que aparecem nos vídeos cruzando a fronteira e entrando em Israel nunca tinham deixado a faixa de Gaza durante as suas vidas. Celebram uma fuga, também, e não apenas o ataque e os sequestros. Nada disso justifica, que fique claro, a morte de dezenas de civis israelenses. Imagens terríveis circulam neste sábado, registrando a captura e assassinato de inocentes. É preciso condenar os ataques do Hamas de maneira inequívoca, como tantos governos já fizeram, inclusive, sem titubear. É preciso pressionar as partes envolvidas para que interrompam as hostilidades, também.

Mas, na esfera pública, palestinos têm feito perguntas importantes, que não podemos ignorar. Por exemplo, querem saber por que o mundo celebra os ucranianos que resistem aos russos enquanto condena os palestinos de Gaza. Querem saber também por que as pessoas não censuram com tanta veemência o cerco contínuo à Faixa de Gaza. Querem saber, ainda, quem vai lamentar a morte de civis palestinos nos próximos dias, durante os ataques do Exército israelense, que vai tentar compensar seu fracasso com violência. A dúvida, nesse caso, é quem tem direito à humanidade.

*Folha

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