Leonardo Sakamoto*
Bolsonaro confirmou que pediu ao empresário Meyer Nigri, dono da Tecnisa, repassar “ao máximo” mentiras que ele enviou sobre as urnas eletrônicas. “Eu mandei para o Meyer, qual o problema?”, disse a Igor Gielow, da Folha de S.Paulo. A resposta tem o mesmo DNA de outras manifestações do ex-presidente que apostam em uma certeza de impunidade.
Antes de mais nada, vale explicar que o “problema” é que golpistas que depredaram as sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro estavam lá porque acreditaram em falsas afirmações sobre o TSE e o STF, como as propagadas por empresários bolsonaristas.
Tanto que levantamento de Pablo Ortellado, coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP, apontou que o primeiro a replicar no Facebook o texto com a mentira encaminhada por Bolsonaro a Negri foi um golpista, o major Ailton Barros. A informação foi inicialmente publicada na coluna de Daniela Lima, no G1.
Barros foi preso com o tenente-coronel Mauro Cid por envolvimento em fraude dos cartões de vacina. A polícia encontrou mensagens dele apelando a Cid para que intercedesse junto a Bolsonaro por um golpe de Estado. Ele aparece em conversas com outros militares, conspirando contra a democracia.
Dito isso, a declaração do “Mandei mesmo, qual o problema?” é prima-irmã do “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.
Questionado em 28 de abril de 2020 sobre o Brasil ter ultrapassado a China em número de mortos por covid-19, Bolsonaro deu essa declaração que se tornou símbolo de seu desdém não só pela vida, mas também da certeza de que sairia impune por suas ações e omissões durante a pandemia.
O “qual o problema” e o “e daí?” também são parentes do “foda-se” do então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, dito em fevereiro de 2020. Ele havia conclamado o presidente a não ficar “acuado” pelo Congresso Nacional (que pressionava para ficar com uma parte maior do Orçamento) e “convocar o povo às ruas”. A indignação foi captada pelo áudio de uma live.
Sabe aquele esforço para se preocupar com as consequências das próprias ações e palavras e, no mínimo, manter as aparências? Nos últimos anos, ele tirou férias, mandando avisar que não daria as caras tão cedo. Com isso, cada autoridade ou membro da elite deste país falou ou fez o que quiseram, sem medo da repercussão negativa junto à população.
Como já disse aqui quando teorizei sobre a “Era do Foda-se”, alguns a defendem pois ela traria transparência. Há uma falsa dualidade nessa história, como se fossem possíveis apenas duas opções: pessoas que fazem coisas erradas e são sinceras (como um ex-presidente que espalhava mentiras sobre urnas para fomentar uma tentativa de golpe) e pessoas que fazem coisas erradas e mentem. Existe a alternativa de fazer a coisa certa e ser sincero, mas – pelo visto – essa está no campo da ficção.
A “Era do Foda-se” tem suas consequências, claro. Vendo autoridades darem de ombros para a razão, a população foi copiando. E passaram a descumprir regras do convívio em sociedade porque perceberam que elas não valem muita coisa mesmo.
Durante a pandemia isso significou seguir as orientações do presidente, ignorando quarentenas, saindo de casa mesmo quando não havia necessidade, contaminando e se deixando contaminar, ajudando a matar.
Depois, isso se traduziu em golpistas trancando rodovias e montando acampamentos com a anuência das Forças Armadas. Ou em ônibus e carros incendiados em Brasília no dia 12 de dezembro, em uma bomba plantada em um caminhão de combustível para explodir o aeroporto da capital federal no 24 de dezembro, e na invasão e destruição do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF no 8 de janeiro.
E ela se manifesta fora da política também. Enquanto equipes de busca procuravam corpos soterrados e as autoridades locais faziam as contas para saber se haveria água potável para todo mundo após as chuvas, no início deste ano, turistas pegaram a estrada com pranchas de surfe, guarda-sóis e cadeiras para em São Sebastião (SP).
A administração do município litorâneo chegou a usar as redes sociais para pedir empatia e solidariedade, solicitando que fossem apenas em caso de necessidade. Muitos dos que deram de ombros e foram à praia poderiam muito bem repetir as palavras de Jair Bolsonaro que, questionado sobre os mortos pela pandemia de covid-19, usou o agora icônico “Eu não sou coveiro, tá certo?”.
Ainda na época do impeachment de Dilma Rousseff, ponderei que a reação em cadeia em curso de uma cassação ilegal inevitavelmente nos levaria para o esgarçamento institucional. E foi o que aconteceu.
Iniciada, a “Era do Foda-se” não pode ser freada do dia para a noite. O fim dela demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos. E de punição a quem causou o mal e confiava que, como Deus, estava acima de todos.
Pela quantidade de provas reunidas pela Polícia Federal em várias frentes, das joias árabes ao fomento do golpe, ele vai precisar de mais do que frases de efeito para se safar.
Publicado originalmente no UOL*