Mulheres que denunciaram violência doméstica em outros países relatam via-crúcis contra ex-companheiros que lançam mão de tratado para ter a guarda de menores.
Depois de passar por violência doméstica no Canadá, Carolina Gouveia viu a oportunidade de proteger a si própria e ao filho, de menos de um ano, em uma viagem à terra natal, São Paulo, para visitar o pai doente, em 2018. Ao se sentir em um ambiente seguro e longe do suposto agressor, o então marido, ela não quis voltar. A viagem, que inicialmente seria de um mês, já durava três quando ela recebeu uma petição solicitando a ida do seu filho, João (nome fictício), ao Canadá, para morar com o pai, a pedido do próprio, segundo O Globo.
Os processos judiciais abertos pelo ex-marido de Carolina, tanto no Canadá quanto no Brasil, nos quais ele saiu vencedor, foram respaldados pela Convenção de Haia, um acordo de 1980 que enquadra o caso dela como sequestro internacional. Desde 2021, Carolina está separada de João, que irá completar seis anos.
A Convenção de Haia é um acordo internacional com 103 países signatários e tem a premissa de impedir que crianças sejam retiradas de seu país de residência habitual sem a autorização de ambos os pais ou do guardião legal do menor. Quando a convenção foi aprovada, a maioria dos casos de subtração de menores era cometida pelos pais, descontentes com a guarda da mãe.
“É um pesadelo”
Hoje, o quadro é outro. A mãe normalmente volta com o filho à terra natal por motivos de violência doméstica, problemas financeiros e emocionais, em busca de refúgio e distância do parceiro. Mulheres são prejudicadas pelo texto inflexível do tratado, que não considera o contexto em que elas estão inseridas. Carolina Gouveia diz que retornou ao Canadá à espera de mudança na decisão da justiça dos dois países.
— É muito duro. Eu já não tenho forças. Meu filho desaprendeu a falar português e está tendo que morar com meu abusador. É um verdadeiro pesadelo, e eu não sei mais o que fazer — afirma.
A defesa do ex-marido de Gouveia, por sua vez, alegou durante o processo que as acusações de violência “são falsas” e que não há provas contra ele.
O advogado especialista em direito internacional Leonardo Leão explica que, conforme a convenção, as regras de direito são do país onde a criança reside:
— Se uma mãe é violentada e tenta fugir, ou foge, o direito é do país onde a criança residia. Quando uma criança é trazida para o Brasil de forma ilícita, sem o cumprimento das formalidades legais, a convenção estabelece que essa criança deve retornar para o país em que reside. Da mesma forma acontece quando há o contrário.
Segundo dados da Conferência de Haia sobre Direito Internacional Privado (HCCH), para cada dez casos de sequestro internacional de crianças, pelo menos sete são contra mães migrantes que eram as principais cuidadoras de seus filhos. Isso significa que mais de 2 mil mulheres expatriadas foram acusadas de sequestrar seus próprios filhos por ano na última década.
A brasileira Stella Furquim, que afirma ter passado por um caso traumático de violência doméstica no exterior, decidiu fundar o Grupo de Apoio a Mulheres Brasileiras no Exterior (Gambe) para auxiliar mulheres como Carolina.
— Quando essas mães passam por violência doméstica fora do país de origem, existe dificuldade para elas voltarem à terra natal junto com o filho e conseguir medida protetiva. O que costuma acontecer na prática, e foi o caso da Carolina, é que essas mulheres obtêm autorização do parceiro para viajar e, quando não voltam no tempo estipulado, os abusadores entram com uma medida respaldados pela Convenção de Haia, as tratando como sequestradoras — afirma Stella.
Desde 2014, o Gambe ajuda mães que lutam para acessar a Justiça no exterior, em um limbo entre o direito internacional privado e os direitos humanos internacionais. Essa experiência mostrou à Stella e às outras duas cofundadoras, Joice Pereira e Rita Casais, que pouca ou nenhuma informação sobre a norma da Convenção de Haia está disponível. O grupo então criou o Observatório Art28 (artigo do tratado que determina o retorno imediato de menores ao país de residência quando retirados de forma irregular) para ajudar a divulgar o tema.
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Histórico de agressões
A comissária de bordo Tunísia Viana, de 42 anos, conta que, em fevereiro de 2014, após ser restringida por meses de manter contato com a própria família e ter o passaporte confiscado pelo então companheiro, precisou “fugir” para o Brasil com as suas duas filhas, numa tentativa desesperada de se livrar do cenário de abusos. A decisão, segundo ela, foi tomada após episódios de violências psicológica e patrimonial — quando o agressor gera prejuízo financeiro ou a perda de bens.
Tunísia disse que precisou se refugiar em um albergue em Miami e teve a ajuda de uma assistente social. Ela conseguiu embarcar para o Brasil — hoje vive em São Paulo — com uma permissão judicial de 15 dias. Nunca voltou aos EUA:
— Iria voltar para ser perseguida? Para viver num abrigo? Ele tentou tirar nossa filha de mim pela Convenção de Haia quando viu que eu não voltaria mais, mas o processo não chegou a ser judicializado porque ele agrediu o cônsul brasileiro. Só viram que ele era agressivo após o caso com um homem. Cinco denúncias de mulheres não valeram de nada antes.
Nos autos, a defesa da ex-marido de Tunísia afirmou que o caso no Consulado Geral do Brasil e Miami foi um “incidente” e negou comportamento familiar violento.
Nove anos depois, a comissária ainda tem medo. Ela agora lidera um projeto voluntário que orienta mulheres vítimas de violência doméstica no exterior sobre onde recorrer.
— Conheço mais de cem mulheres em situação similar à minha —diz.
Uma dessas é Samara Villar, de 42 anos, que conheceu Tunísia no albergue em Miami, em 2013. Ela teve uma filha com o ex-marido, americano, no Brasil. Samara conta que, meses após o parto, ela e a sua filha foram conhecer a família paterna do ex-marido, em Miami. Foi aí que, nas palavras dela, “tudo desandou”.
Segundo Samara, ele a impediu de viajar ao Brasil. Depois, ainda de acordo com ela, passou a gritar e a empurrá-la, tornando-a vítima de violência doméstica.
— Denunciei para a polícia, mas ele era respeitado por ser ex-militar. Com três meses no albergue, tiraram minha filha de mim para visitar o pai. Ela passou um final de semana e voltou machucada — afirma.
Alguns meses após a primeira visita ao pai, a menina de 2 anos foi retirada definitivamente da mãe. Ela recorreu à Convenção de Haia pela Justiça brasileira, que solicitou a devolução da filha, nascida em solo brasileiro, à mãe. A Corte americana negou o pedido. Há dez anos ela luta pela guarda da filha.
Em 2020, o ex-companheiro se mudou com a filha, já adolescente, para outro estado, e Samara perdeu totalmente o contato:
— Continuo nos EUA brigando por ela. Infelizmente, parece que nossas crianças são uma moeda de troca — desabafa ela, que trabalha num hotel e com micropigmentação de sobrancelha.
No processo na Justiça dos EUA, a defesa do ex-companheiro de Samara negou as acusações de violência e afirmou que a guarda deveria ser retirada da mãe pelo risco de ela levar a criança ao Brasil.