Passa despercebido de 90% da opinião pública global o real significado da Guerra da Ucrânia no atual estágio Geopolítico que o Mundo atravessa. Passados mais de um ano da escalada do conflito em fevereiro de 2022 (um conflito iniciado em 2014) e boa parte do que é veiculado na grande imprensa criou um caldo de cultura extremamente confuso onde a ideologia dominante que resultou da cobertura antiética dos conglomerados “atlanticistas” de imprensa simplificou ao máximo o contexto de fundo do conflito e resumiu a tomada de Donbass dentro da “Operação Z” num problema de “maldade” pura e simples do governo Putin – taxado de “ditadura Putin”.
Como de costume, é sempre negado ao povo os instrumentos que o permitem entender o desenrolar dos acontecimentos. É verdade que muitos se quer desejam entender, a maioria não entende e não quer entender absolutamente nada no seu contexto correto, mas curiosamente, desejam sim impor sua opinião controvertida sobre a problemática. Este fenômeno, aliás, é curioso. No Brasil nós tivemos a infelicidade de ver esse comportamento massificado na última década e isso trouxe consequências nefastas para nosso país. Uma boa parte da opinião pública deseja opinar sobre uma ampla gama de assuntos sérios sem a real noção do que está ocorrendo e sem entender a gravidade do que a divulgação de certas opiniões podem gerar. A pior coisa que pode existir para qualquer civilização que se pretende racional é deixar opiniões atravessadas e confusas ganharem espaço. E as opiniões públicas observadas quase sempre estão alinhadas com o que os grandes artífices da manipulação desejam: a narrativa de Putin como uma espécie de “novo Hitler” e um enredo que resume a Geopolítica num filme da Marvel. Se resumirmos a História e a Geopolítica a filmes de heróis e mocinhos conseguimos dialogar perfeitamente com essa força política que é a opinião das massas e manobrá-las para onde quisermos. Esse é o pensamento da indústria cultural dos EUA e dos grandes monopólios que controlam a economia global. A questão é que não podemos aceitar estas manobras.
O conflito na Ucrânia representa um cenário de complexidade imensa. Não se trata de uma ação militar pontual da Rússia como se fosse um rompante maluco do governo Putin. A escalada do conflito em Donbass foi a reação inevitável das provocações que a Rússia (e por tabela o Mundo emergente) tem sofrido desde ao menos 2008 (para pegar o prazo mais curto). Os Estados Unidos e a OTAN de conjunto há muito trabalham dia e noite para criar instabilidades na Eurásia e impor sua política no local, algo que não é obtido desde o século XIX quando Império Britânico e Império Russo se abalroavam sobre o controle do “Heartland” da Eurásia. A Guerra da Ucrânia é simplesmente mais um episódio de uma coleção antiga, uma problemática que tem acompanhado a História humana desde o despertar dos impérios industriais da Europa Ocidental; impérios monopolistas não aceitam apenas a hegemonia dos mares mas também o controle de rotas comerciais terrestres da Eurásia.
As tentativas de se controlar o “Heartland” da Eurásia ajudam a explicar inclusive grande parte da Primeira e Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Por esta razão, não vale a pena entrar no assunto “Guerra da Ucrânia” sem conhecimento e sem contexto. Não é recomendável divulgar opiniões rasas apenas para criar um hype nas redes sociais. O assunto é profundo e é grave. Devemos chamar a atenção para isso porque, mais uma vez, nos deparamos com uma situação cujos efeitos colaterais podem ser extremamente sérios para o Mundo em desenvolvimento: a desestabilização derradeira de Moscou. E é exatamente isso que os EUA desejam, um foco vulnerável na Rússia para eliminar um adversário duríssimo que representa, de certa forma, o braço armado do Mundo emergente contra o domínio unilateral de Washington. Essa desestabilização começa, numa análise mais recente, em 2021 com convite de Biden para a Ucrânia ingressar na OTAN, uma agressão que tinha o objetivo de criar justamente o efeito que vemos hoje. A ação militar intempestiva de Moscou como única válvula de escape para impedir o avanço do cerco territorial ao qual os russos e, por tabela, os chineses estão sendo submetidos foi a única saída diante do jogo da xadrez geopolítico. A ação militar russa foi uma manobra arriscada não só para o Ocidente mas para os próprios russos. A partir do momento que você vai para o ataque, deixa-se também um espaço vulnerável para o adversário. Os russos sempre souberam disso mas, lamentavelmente, não se atentaram para os riscos envolvidos na estratégia de delegar alguns dos fronts do conflito nas mãos de um grupo de mercenários, o Grupo Wagner.
O Grupo Wagner desempenhou um papel fundamental nas batalhas de Aleppo, Palmyra, Deir Zor na Guerra Civil Síria (2011-atual) e garantiu com sucesso a participação russa na defesa do governo de Bashar Al-Assad, cuja queda interessava à OTAN desde o início do conflito. Este grupo cresceu e recrutou ainda mais adeptos saindo de 250 soldados em 2014 para mais de 50 mil em 2023. É uma força que escalou naquilo que se especializaram, conflitos localizados onde os países no seu geral evitam entrar diretamente com forças oficiais. Esta terceirização até pode ser positiva em “tiros curtos” ou ações pontuais, mas representam enormes riscos no médio prazo. Grupos mercenários não possuem compromisso com projetos de longo prazo, são meramente grupos mercenários.
Mas não é exatamente sobre o que pensam os mercenários que devemos nos preocupar e sim o cenário de instabilidade na Rússia com capacidade de levar a uma guerra civil. Esta “traição” do Yevgeny Prighozin – o chefe máximo do Grupo Wagner – é sim algo que deve preocupar demasiado Vladimir Putin e este deve, por sua vez, responder com o máximo de eficácia possível para debelar este motim. Do contrário, pode gerar um efeito dominó. Em caso de fracasso, não é somente a Rússia que sofrerá as consequências mas sim o projeto de Mundo Multipolar que, inclusive, o Brasil é um dos personagens principais. A Rússia quer queira, quer não, é a atual força armada dos BRICS e dos países emergentes. É a nação que deu sua cara a tapa para defender uma perspectiva outra, uma perspectiva não alinhada com as doutrinas do Pentágono e de Washington. Por este motivo, é importante que as representações políticas de esquerda no Brasil não se deixem levar por ideias de “Putin ditador”, “Putin vilão” e etc. Estas ideias somente servem aos interesses do próprio Imperialismo que há muito deseja criar uma frente única com setores democráticos para incriminar um concorrente forte. Quer as pessoas gostem ou não, ou melhor, saibam ou não, Putin e a Rússia estão tentando segurar a virulenta agressividade do Imperialismo em crise, que tem respondido por uma série de guerras e de ofensivas em todo o Mundo (de forma direta e indireta).