Querer apenas a cassação ajuda a manter vivo o hábito golpista brasileiro.
Com o julgamento do Tribunal Superior Eleitoral, começa a se esboçar o futuro político de Jair Bolsonaro. O que vai acontecer com o mais repulsivo governante da história do Brasil?
Na última coluna, a sempre atenta Mariliz Pereira Jorge fala sobre Bolsonaro perder apenas os direitos políticos. Ela também gostaria que o acerto de contas fosse mais profundo, eficaz. Não é por amor à prisão.
O golpe tem roteiro. Conspira contra o resultado das urnas eletrônicas (em 2018, quando venceu, e em 2022, quando perderia por pouco), acusando-as de fragilidade e manipulação. Abuso de poder, arrogância, notícias falsas e redes sociais, o presidente tenta minar a credibilidade da Justiça Eleitoral.
Depois, a digital de Bolsonaro está nas omissões. Submerge sem desaparecer. A máquina não para. Contrários ao resultado das urnas, os acampamentos diante dos quartéis têm sua simpatia e ajuda: espalham, entre caminhoneiros e familiares de soldados e oficiais, o verme da desobediência e da tentação autoritária.
Com a diplomação de Lula, Brasília e a sede da Polícia Federal são atacadas. É um pequeno ensaio. Todos os Poderes, inclusive a Presidência da República, prevaricam.
Para se proteger de acusações, Bolsonaro deliberadamente finge nada saber e anima a fermentação golpista com ruídos do próprio silêncio.
Mas o golpe não dá certo. A desordem é para inspirar um movimento militar capaz de convocar Jair Bolsonaro para reassumir o governo e restaurar a democracia.
No plano jurídico, cegueira deliberada vem da jurisprudência norte-americana para o combate de uma farsa defensiva. Para não ser punido, o agente do delito conscientemente desenvolve barreiras aparentes para explicar suposto desconhecimento dos fatos.
No Brasil, a teoria tem sido recomendada (inadequadamente) para a condenação de lavagem de dinheiro. Seria mais palatável admiti-la para a condenação criminal da tentativa de golpe.
Os indícios chegam muito perto de Bolsonaro —no ajudante de ordens, no ministro da Justiça. Mas, aparentemente, a troca de mensagens incriminadoras não alcança seus dispositivos de uso pessoal. Apesar da barulheira golpista que patrocinou, surge o mantra da perseguição, da ausência visível de culpa.
Há quem sugira ignorar Bolsonaro. Pairando como zumbi, seria inofensivo —muito embora a inelegibilidade não o impeça de ser eficiente cabo eleitoral do ódio extremista.
Os sinais vêm de Brasília. A advogada de Bolsonaro (assim como a bancada evangélica) apoia a indicação de Zanin para o Supremo. A falta de provas está acima das diferenças ideológicas. O radicalismo incômodo de Bolsonaro não o impede de ser cortejado em tribunais: cegueira deliberada. Bolsonaro recebe recomendação de ficar em silêncio, tranquilo, sem afrontar.
Comandantes de quartéis com acampamento de golpistas não são afastados. Coronel golpista é designado para embaixada em Washington. A Procuradoria-Geral da República segue acusando só o lumpesinato golpista. O Supremo tem tradição de limpar a folha corrida de coronéis suspeitos e poderosos, como Arthur Lira e Renan Calheiros, transformando cangaceiros em estadistas.
Entre os que preferem só a cassação de Bolsonaro, há quem gostaria de vê-lo repaginado, circunspecto, circulando em coquetéis festivos, apreciador de bons vinhos e boa comida, mesmo que inelegível, livre como um passarinho. Para manter vivo o hábito golpista brasileiro.
Luís Francisco Carvalho Filho/Folha