O enterro da democracia, mas “dentro das quatro linhas da Constituição”
“O presidente Bolsonaro jamais participou de qualquer conversa sobre um suposto golpe de Estado”, disseram seus advogados de defesa em nota oficial. E acrescentaram, a propósito do plano de golpe encontrado no celular do ajudante de ordem de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, preso há 45 dias:
“Registramos ainda que o ajudante de ordens, pela função exercida, recebia todas as demandas – pedidos de agendamento, recados etc. – que deveriam chegar ao presidente da República. O celular dele, portanto, em diversas ocasiões, se transformou numa simples caixa de lamentações”.
Na categoria “lamentações”, certamente se destaca a prosaica mensagem enviada a Mauro Cid pelo coronel Jean Lawand Junior, à época o subchefe do Estado Maior do Exército, cotado para ser promovido em breve a general:
“Cidão, pelo amor de Deus, cara. Ele [Bolsonaro] dê a ordem que o povo está com ele, cara. Se os caras [os generais] não cumprir, o problema é deles. Acaba o Exército Brasileiro se esses caras não cumprir a ordem do Comandante Supremo. Como é que eu vou aceitar uma ordem de um General, que não recebeu, que não aceitou a ordem do Comandante. Pelo amor de Deus, Cidão. Pelo amor de Deus, faz alguma coisa, cara. Convence ele a fazer”.
Destaca-se também a troca de mensagens entre Gabriela Santiago, mulher de Mauro Cid, e Ticiana Villas Bôas, filha do general Villas Bôas, comandante do Exército quando Bolsonaro se elegeu. Bolsonaro é grato a Villas Bôas. A mulher do general frequentou o acampamento dos golpistas à porta do QG do Exército.
Ticiana – Tem que ter alguém que articule isso com os protestantes. E isso tem de vir dos caminhoneiros.
Gabriela – Não vai ser dessa forma. Como você falou, a orientação tem que ser outra. Os caminhoneiros têm que ser orientados.
Ticiana – Alguém tinha que falar com eles.
Gabriela – Sim, foi o que o presidente pediu. E acho que todos têm que vir para Brasília.
Gabriela – Invadir Brasília como no 7 de setembro, e dessa vez o presidente com toda essa força agirá.
O golpe seria em três atos, aqui resumidos.
Ato I
Bolsonaro proclama que as decisões tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral durante as eleições de 2022 desrespeitaram a Constituição, decreta o Estado de Sítio e pede que os militares indiquem um interventor federal.
Ato II
O interventor afasta do tribunal os ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, substituindo-os pelos ministros André Mendonça, Kássio Nunes Marques e Dias Tóffoli. São anulados os resultados da eleição presidencial de 2022
Ato III
Dentro de um prazo incerto, o interventor convoca uma nova eleição presidencial. (A minuta do golpe não diz se Bolsonaro poderá disputá-la, e se Lula será impedido. Mas diz que tudo será feito “dentro das quatro linhas da Constituição”.)
Está na Constituição que a democracia é uma cláusula pétrea. Como tal, não pode ser revogada. Nada previsto na minuta do golpe sob a guarda de Mauro Cid está de acordo com a Constituição. Um dos fundamentos da democracia é a alternância no poder. Bolsonaro nunca escondeu que é a favor da ditadura.
Ele só não tentou dar o golpe porque não tinha certeza da adesão à ideia do comando do Exército e das demais Forças. Afirmar que jamais conversou sobre o golpe com ninguém, jamais ouviu falar de golpe, jamais cogitou aplicá-lo é uma grossa mentira, mais uma de um presidente que governou à base de mentiras.
Na palavra de Bolsonaro, hoje, só acreditam – ou talvez ainda acreditem – aqueles que, segundo o coronel Jean Lawand Junior, “cagavam” e tomavam “banho de chuva” sob a proteção dos militares, país afora.
*Blog do Noblat